A figura que inicia esse artigo mostra a localização da focal laser ablation needle em um T2-W MRI. Contudo, os oncologistas que estão lendo esse artigo não devem entusiasmar-se muito, pois vou falar muito pouco das modernas intervenções minimamente invasivas para câncer de próstata e mama. A figura só serve para ilustrar a seguinte tese: para funcionar, sistemas universais de saúde precisam de uma lista de procedimentos, e tenho certeza de que focal laser ablation of the prostate não está na lista de nenhuma organização que paga tratamentos de câncer. Se você decidir que quer fazer uma biópsia genômica de câncer de próstata seguida de focal laser ablation of the prostate, terá de pagar do próprio bolso pelo privilégio.
A pergunta que todo médico faz é: Por que o governo brasileiro, ou inglês, não investe mais em saúde, de modo a incluir tecnologias coruscantes como análise genômica, cancer specific staining, focal laser ablation e CAR T cell therapy?
A questão é que, se a ''Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM'' do SUS fosse aberta a qualquer proposta, os pacientes iriam querer reembolso para homeopatia, manipulação osteopática, carne de cascavel e outras coisas. Pela mesma razão, a lista de serviços especializados do National Health Service do Reino Unido não pode incluir qualquer novidade que surja nos centros de pesquisas americanos ou franceses. A queda no nível de inovação é uma das desvantagens dos sistema universais de saúde.
Vou dedicar o resto desse artigo cumprindo a ingrata e antipática tarefa de comparar alguns dos sistemas de financiamento médico mais discutidos na atualidade.
O modelo inglês estabelece que um sistema de saúde deve ser comprehensive, universal and free at the point of delivery. Por comprehensive, os ingleses querem dizer que os profissionais de saúde do país devem fornecer uma ampla gama de serviços. A expressão free at the point of delivery indica que, embora o sistema seja pago, os contribuintes bancam a conta; assim, no ponto de entrega do serviço, o beneficiado não paga nada.
O sistema do Canadá também é de acesso universal, mas ao contrário do inglês, o modelo canadense é baseado em seguro de saúde financiado pelos governos provinciais. No Canadá, cada médico submete o pedido de reembolso ao governo da província, que age como uma empresa seguradora.
Vamos começar a análise pelos Estados Unidos, que têm um sistema híbrido, onde há pessoas que pagam diretamente pelo serviço recebido, há planos de saúde particulares e há também o Medicare e Medicaid, que é bancado pelo governo federal.
Formação Profissional nos Estados Unidos
Não é fácil gostar do sistema de saúde americano. A polêmica começa pela educação. Abraham Flexner desenhou a educação médica americana como um curso de doutorado. Flexner propôs que o futuro médico fizesse pelo menos dois anos de bacharelado em ciência antes de entrar na escola de medicina. Atualmente, dificilmente um estudante começa medicina sem um bacharelado completo em Science, Technology, Engineering and Mathematics, ou STEM, for short. Em suma, quase todo médico americano tem a formação acadêmica de um engenheiro.
Um curso de medicina nos Estados Unidos custa muito caro, e há uma razão para isso. Para pagar o curso, o estudante tem duas opções, ou pede empréstimo a um banco, ou trabalha como engenheiro por quatro ou cinco anos e deposita o dinheiro em uma escrow account, uma conta bancária que abre expressamente para pagar sua formação de médico. No caso de trabalhar como engenheiro, o médico americano ganha experiência prática para construir robôs cirurgiões, desenhar drogas inteligentes e lidar com equipamento de laboratório. O médico que optou por pedir empréstimo aprende a administrar recursos e analisar contratos, duas habilidades úteis na vida profissional. Nos dois casos, a necessidade de pagar para estudar ajuda na carreira.
A grande vantagem da componente privada do serviço de saúde dos Estados Unidos é que os médicos americanos são muito inovadores. Podemos dizer, sem medo de exagerar, que 80% das novas tecnologias médicas têm origem nos Estados Unidos.
O fato de grande parte dos médicos americanos ter também formação de engenheiro ajuda no desenvolvimento de tratamentos eficazes e lucrativos. Além disso, médicos americanos ganham bem, o que é sempre um incentivo e traz recursos ao desenvolvimento de novas tecnologias. Praticamente em qualquer escola de medicina americana há um ou dois professores bilionários. Na Universidade de Miami, por exemplo, o Professor Phillip Frost fez fortuna na indústria farmacêutica e desenvolvendo instrumentos cirúrgicos descartáveis para dermatologia. Por seus instrumentos, Dr. Frost entrou no Florida Inventors Hall of Fame. Essas pessoas hábeis em ganhar dinheiro acabam entrando para o board of trustees, composto pelas pessoas que administram as finanças da universidade.
Para ouvir uma defesa do sistema americano (e um ataque ao sistema canadense), sugiro que vocês assistam ao seguinte vídeo de Lanhee Chen:
As desvantagens do sistema americano são óbvias. Um seguro de saúde nos Estados Unidos não é caro. Meu filho faz residência em um grande hospital americano. O Department of Health and Human Services paga o salário e o seguro dele, mas cada dependente custa aproximadamente 200 dólares por mês.
Quando uma pessoa não faz seguro, acontecem as tragédias humanas que tanto prejudicam a imagem do sistema de saúde americano. Se o paciente não-segurado tem bens, é obrigado a utilizá-los para cobrir a conta de tratamentos médicos. Quem acompanhou a série Grey's Anatomy deve estar lembrado do episódio em que o dono do bar em frente ao Seattle Grace Hospital foi informado de que teria de vender seu estabelecimento para pagar a conta de uma cirurgia cardíaca.
Um programa governamental chamado Medicaid cobre os custos do tratamento de pessoas com recursos limitados. Para pessoas com mais de 65 anos, há um seguro de saúde denominado Medicare, que é administrado pelos Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS). Não preciso dizer para vocês que, até onde eu sei, o Medicare não cobre nem focal laser ablation of the prostate nem homeopatia.
Outra fonte de tragédias no sistema de saúde americano é a pressão sobre os jovens residentes que não conseguem administrar as dívidas, além de trabalhar 80 horas por semana. Isso mesmo, senhores, residente nos Estados Unidos tem uma carga semanal de 80 horas, não apenas 60 como no Brasil. Vocês residentes brasileiros levam uma vida folgada e não sabiam! A dificuldade de administrar as dívidas associada a uma alta carga de trabalho faz com que suicídio seja a segunda principal causa de morte entre os médicos residentes americanos.
Sistema Canadense
Como eu disse antes, no Canadá, as províncias agem como seguradoras. Por exemplo, depois de morar alguns anos na Província de British Columbia, um indivíduo recebe um seguro de saúde. Quando esse indivíduo fica doente, os médicos e hospitais fazem o tratamento e apresentam a conta para a seguradora, que é o governo provincial. Simples assim.
Uma das consequências da maneira canadense de fazer seguro de saúde era esperada: O gasto das províncias com saúde aumentou muito. Como os canadenses pagam pouco ou nada por atendimento médico, o consumo de serviços de saúde aumentou. Em 2010, a província de Ontario, a maior do Canadá, gastou 46% de seu orçamento com saúde. Em 2019, o gasto já passou de 50 por cento, e espera-se que suba para 80% em 2030. A outra consequência, entretanto, foi inesperada: Médicos desempregados. Leiam o seguinte artigo:
Há várias explicações para o desemprego de médicos no Canadá. Minha favorita é que, quando o serviço é totalmente gratuito, aumenta o consumo, o que gera filas e listas de espera por cirurgias, exames e diagnósticos. Além disso, o dinheiro da província acaba e o governo não consegue pagar valores atraentes para que empresas construam hospitais, comprem equipamentos, organizem transporte por helicópteros e levem médicos aos rincões gelados do Canadá. A interpretação que os políticos dão às longas filas, contudo, é sempre dizer que faltam médicos. Então, o Canadá abriu mais escolas de medicina, mas continuou sem dinheiro para contratar os médicos que saem dos programas de residência.
Outra consequência do sistema canadense é a total falta de inovação. O professor Joseph Lamelas, que hoje trabalha no Jackson Memorial Hospital, desenvolveu um método de cirurgia do coração que quase não deixava cicatrizes, ou as deixava em locais pouco aparentes, como nas axilas. Quando Danny Williams, um dos políticos canadenses responsáveis pela implementação do sistema de saúde de seu país, precisou de uma cirurgia, viajou até Miami para ser operado pelo Dr. Lamelas.
Não vou discutir o sistema inglês de gerir diretamente os tratamentos de saúde, pois ele tem problemas parecidos com o sistema canadense. Também deixarei de fora dessa discussão o excelente sistema francês, para não alongar-me muito.
Desempenho
Quando o assunto é sistemas de saúde, muita gente pergunta: Se o sistema de saúde americano é tão bom, por que a expectativa de vida nos Estados Unidos está caindo? Essa pergunta tem variações. Ao constatar as longas filas e listas de espera nos hospitais de Londres, além das opções limitadas de tratamento e das péssimas estatísticas de sobrevida de câncer, um médico italiano perguntou-me: "Como o Commonwealth Fund chegou à conclusão de que o sistema de saúde do Reino Unido está em primeiro lugar em Quality of Care, Access to Care e Equity?"
Um médico inglês, que estava nos ouvindo, respondeu por mim: Com justiça ganhamos esse prêmio. Embora ultrapassado tecnologicamente, se o paciente sobreviver às longas listas de espera, nosso atendimento é efetivo e seguro. Todos têm acesso ao sistema, basta esperar naquela fila ali. Finalmente, ninguém pode acusar-nos de falta de equidade. Como dizia Bernard Shaw, o sistema de saúde inglês trata tão mal uma duquesa quanto uma florista.
A medicina não é a única coisa que influencia na longevidade ou na mortalidade infantil. Por exemplo, ao eliminar os assassinatos e mortes no trânsito no modelo de Gompertz, Cuba aumentou a expectativa de vida do país em 4 anos. A China aumentou em dois anos. A Espanha aumentou a expectativa de vida em 6 meses graças às medidas de segurança viária propostas por Pere Navarro.
Desde a antiga Escola de Salerno, a vocação do médico era descrita pela sentença, Sanare aliquando saepe juvare semper consolarare, que pode ser traduzida por curar de vez em quando, frequentemente ajudar e sempre consolar. Talvez uma moderna cirurgia de catarata não acrescente anos na vida de um paciente, mas certamente acrescenta autonomia aos anos que lhe restam. Da mesma forma, uma cirurgia tradicional de prostatectomia pode ter o mesmo efeito da focal laser ablation of the prostate na sobrevida do paciente, mas o tratamento com laser certamente aumenta a qualidade de vida.
A propósito, eu nunca tive câncer de próstata, mas conheço algumas pessoas que tiveram e ficaram muito satisfeitas com a focal laser ablation of the prostate. Isso não tem nada a ver com o tema do artigo, mas sei que alguns de vocês estão curiosos.
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