Bem-vindos à série "Gabinete de Curiosidades Médicas"! Aqui você vai encontrar fatos curiosos, sombrios ou interessantes sobre a história da medicina e das artes. Prepare-se para um encontro inesperado com médicos, escultores, pintores, filósofos que se unem para contar um pouco das inusitadas intersecções, costuras e remendos entre ciência, medicina e literatura no Século XIX.
Vamos lá?
Apesar de todas as dificuldades, entraves e bizarrices, me sinto seguro em dizer, contrariando os saudosistas e as “almas antigas”, que não há melhor tempo para se viver do que o agora. Quem pensa o contrário sequer faz ideia de como era a situação da vida de uma pessoa que por infortúnio precisasse de cuidados médicos.
Ir ao barbeiro antigamente era mais parecido com entrar em uma sala de cirurgia sangrenta e fétida do que um lugar para conseguir um bom corte de cabelo, com profissionais asseados que usam as lâminas para dar aquela ajeitada no seu cabelo ou na sua barba.
Uma sangria aqui, um dente sendo extraído ali, enquanto outra pessoa tem um abscesso retirado no canto da sala: enfim um verdadeiro show de horrores capaz de revirar até os estômagos mais fortes.
Parece estranho e ridiculamente exagerado? Mas, acredite, era exatamente assim.
Acontece que, até o século XVIII, a profissão dos barbeiros era muito mais próxima da medicina que conhecemos hoje e desde a Idade Média eles eram chamados de barbeiros-cirurgiões ou cirurgiões-barbeiros. Estavam abaixo dos médicos propriamente dito (que desfilavam seu latim em teorias, sem quase nunca tocar num paciente) e dos cirurgiões, que tinham educação formal e cuidavam de outros serviços considerados mais técnicos e difíceis de serem executados. Eram pessoas normalmente sem educação formal, que ofereciam uma série de serviços e tinham lugar em monastérios e outras instituições.
As duas profissões, a dos barbeiros-cirurgiões e dos cirurgiões propriamente dita, foram consideradas praticamente uma só coisa de 1540 (quando Henry VIII estabeleceu a Companhia dos Cirurgiões-Barbeiros) até 1745, quando elas foram finalmente separadas de maneira mais decisiva. O mais famoso entre os barbeiros-cirurgiões foi Ambroise Paré, que viveu no século XVI, pioneiro no tratamento de ferimentos a armas de fogo e desenvolvimento de próteses (aos mais afobados, eu peço calma: falaremos dele mais detidamente em coluna posterior).
Para quem acha que esses profissionais estavam presentes apenas em lugares da Europa, eu convido-os a olhar mais de perto e mais próximo. Aqui, no Brasil colonial do século XIX, existiam barbeiros cirurgiões e muitos deles eram negros, que geralmente atendiam outros escravos.
Em uma das gravuras presentes no livro “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, Jean-Baptiste Debret retrata um homem negro cortando o cabelo de uma pessoa, enquanto outra está deitada de bruços na calçada com ventosas nas costas. Na descrição da imagem ele explica: “Em cada bairro da cidade há um cirurgião africano, cujo gabinete de consulta, de nomeada, se acha instalado sem cerimônia à porta de uma venda. Consolador generoso da humanidade negra, ele dá suas consultas de graça, mas como os remédios receitados comportam sempre alguma droga, ele fornece os medicamentos mediante pagamento.”
Outra história interessante sobre os cirurgiões-barbeiros está relacionada à origem da famosa barra colorida que hoje serve para identificar uma barbearia. Ela remonta aos tempos em que cirurgiões e barbeiros-cirurgiões precisavam por lei diferenciar as profissões e mostrar à população quais serviços eram oferecidos no local. A partir de então, a barra com cores vermelha e branca passou a identificar os cirurgiões, enquanto o azul e o branco indicavam os serviços dos barbeiros-cirurgiões.
Felizmente, hoje não corremos mais o risco de entrar em um salão com a intenção de dar aquele tapa no visual e acabar saindo de lá com outro tipo de corte.