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Gabinete de Curiosidades Médicas: livros encapados em pele humana

Gabinete de Curiosidades Médicas: livros encapados em pele humana
Jocê Rodrigues
out. 23 - 6 min de leitura
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Bem-vindos à série "Gabinete de Curiosidades Médicas"! Aqui você vai encontrar fatos curiosos, sombrios ou interessantes sobre a história da medicina e das artes. Prepare-se para um encontro inesperado com médicos, escultores, pintores, filósofos que se unem para contar um pouco das inusitadas intersecções, costuras e remendos entre ciência, medicina e literatura no Século XIX.

Vamos lá?

Muito antes da criação da prensa móvel por Gutenberg no século XV, o livro já era considerado como objeto capaz de elevar o espírito humano a alturas inimagináveis.

No século XII, por exemplo, em meio à crescente onda da cultura livresca, o filósofo Hugo de São Vítor já defendia a ideia de que a leitura, junto com a reflexão e a contemplação, seria responsável por desenvolver uma pessoa não só intelectualmente, como também espiritualmente:

“Existem principalmente duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditação. Destas, a leitura detém o primeiro lugar na instrução.”

O livro pode ser visto então como um objeto físico que guarda em si os caracteres da vida interior, capaz de revelar o mundo natural e o metafísico, e através do qual é possível adentrar a antessala do infinito. Motivos mais do que suficientes para justificar a quase veneração de muita gente em torno dele. 

Uma outra paixão presente na história da humanidade é o uso da pele humana para confeccionar objetos e vestimentas. Por mais estranho que possa parecer, essas peças podem ser encontradas em diversas culturas em muitas partes do mundo. Agora, junte essas duas paixões e teremos como resultado a bibliopegia antropodérmica: a prática de encadernação de livros em pele humana. 

Há séculos a existência desses artefatos macabros povoam o nosso imaginário, mas só recentemente ela foi confirmada por meio de testes científicos, que acabaram por mostrar que eles nem de longe se parecem como aqueles mostrados nos filmes de terror, com rostos humanos estampados ou algo parecido. Muito pelo contrário: eles se parecem exatamente como qualquer outro livro que você encontraria na biblioteca particular do seu pai ou do seu avô.

Além da agora confirmada existência, outro fato chama a atenção quando se fala desses objetos no mínimo peculiares: a participação direta de cirurgiões do século XIX em sua confecção.

Após falecer em 1869, devido a problemas de saúde relacionados à tuberculose e à triquinelose, o corpo da jovem mulher chamada Mary Lynch foi parar na mesa de autópsia do médico norte-americano John Stockton Hough. Durante os procedimentos para definir a causa da morte, ele resolveu retirar uma parte da pele das coxas de Lynch e enviou o cadáver dela para ser enterrado em uma cova destinada aos menos abastados, no cemitério de Old Blockey.

Décadas depois, quando Hough já contava com o prestígio dos colegas e recursos financeiros, sendo reconhecido inclusive como importante bibliófilo e colecionador, ele teve a ideia de usar a pele que havia guardado da moça para encadernar três de seus preciosos livros. 

Ironicamente, os títulos escolhidos tratavam justamente sobre saúde e reprodução feminina, sendo eles o Les nouvelles découvertes sur toutes les parties principales de l’homme, et de la femme, de Louis Barles; Recueil des secrets de Louyse Bourgeois, de Louise Bourgeois; e o Speculations on the Mode and Appearances of Impregnation in the Human Female, de Robert Couper - que atualmente faz parte da coleção do Mütter Museum, na Filadélfia. 

Desconfia-se que, além destes, outros livros tenham sido encadernados em pele humana pelo médico, mas, visto que sua coleção foi vendida para outras instituições e colecionadores, é difícil saber ao certo o tamanho das consequências da sua estranha obsessão, que aparentemente era compartilhada por outros nomes da profissão.

Outro médico que sucumbiu à prática mórbida de usar pele humana como material literário foi o francês Ludovic Bouland, que se utilizou da pele retirada das costas de uma mulher indigente que sofria de uma doença mental. 

O título escolhido por Bouland  para ser encadernado foi o Des destinées de l’ame, do escritor Arsène Houssaye, volume que hoje se encontra na biblioteca da Universidade de Harvard. Na capa de rosto do exemplar existe uma anotação feita por Bouland na qual se lê:

“um livro sobre a alma humana bem merece que se lhe dê uma vestimenta humana”. 

Outro livro encadernado por Bouland é um tratado sobre virgindade do século XVII, que também traz uma anotação feita por ele:

“Este curioso livrinho sobre virgindade e as funções femininas geradoras parecia-me merecer uma encadernação relevante para o assunto. É encadernado com um pedaço de pele feminina, bronzeado por mim com sumagre”.

Este livro atualmente faz parte da coleção da Wellcome Library, em Londres, e desconfia-se que tenha sido encadernado por volta de 1865.

Estes são apenas alguns exemplos dessas peças de gosto duvidoso. Outras ainda podem ser reveladas em pouco tempo e isso serve para nos mostrar como às vezes as nossas paixões podem nos levar um pouco longe demais. 

Principalmente quando se tem uma faca afiada e uma licença para cortar.

E você? O que acha de um livro encapado em pele humana figurando na coleção de uma biblioteca ou na estante de um colecionador?


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