“Não há nada que faça um homem suspeitar tanto como o fato de saber pouco”. A frase proferida por Francis Bacon (1561-1626), político, filósofo e considerado o “pai” do método científico, explicita a necessidade inata humana de buscar o conhecimento, de forma que a aliança entre a experiência e a razão tem se tornado, ao longo dos séculos, a principal ferramenta de avanço da ciência [1].
Aplicando-se esse contexto para a realidade específica da graduação em Medicina, encontra-se uma grande quantidade de alunos com potencial e recursos de acesso à ciência produzida nas universidades, contudo, sem domínio acerca das ferramentas necessárias para a produção de conhecimento. Nesse sentido, a pesquisa básica, estimulada principalmente nas universidades públicas mediante programas de iniciação científica (IC), tem se mostrado um instrumento fundamental na desmistificação do método científico para os graduandos de Medicina.
Segundo o Manual de Frascati, a pesquisa básica pode ser conceituada como a “realização de trabalhos teóricos ou experimentais, cuja finalidade principal seja a aquisição de novos conhecimentos sobre os fundamentos de fenômenos e fatos observáveis, sem objetivo particular de aplicação ou utilização”, usando-se, para esse fim, modelos in vitro (culturas de células) ou in vivo (animais de experimentação) [2]. No Brasil, o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), fundado em 1951, é a principal entidade de financiamento da pesquisa básica nas universidades, promovendo anualmente a inserção de alunos de graduação desde sua criação na década de 50.
Todavia, um grande avanço para a pesquisa nacional foi a fundação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), pelo CNPq, que passou a remunerar os graduandos em suas atividades. Nessa mesma linha, as agências estaduais de fomento, como, por exemplo a FAPESPA (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará), a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), dentre outras, passaram também a financiar a pesquisa em seus respectivos estados [3].
Apesar da popularização da IC entre os alunos de Medicina, alguns limites ainda são enfrentados por parte da comunidade científica nas graduações, a saber, a principal delas, a escassez de verbas dirigidas às universidades por parte do Governo Federal para financiar os insumos necessários da pesquisa básica.
Em outubro de 2021, o Brasil sofreu um corte orçamentário estimado em R$ 600 milhões que seriam destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), crise essa instalada desde os anos 2000 e que vem se agravando desde 2016 [4]. Além do déficit orçamentário, outra dificuldade mais específica do curso de Medicina se dá pela diminuta disponibilidade de tempo para a dedicação às atividades de IC, uma vez que a graduação integral não institucionalizou o programa no currículo médico
. Espera-se que, em um futuro próximo, a IC seja aderida ao plano curricular do curso de Medicina, meta já alcançada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), por exemplo, que conta com disciplinas optativas de “Introdução à Pesquisa Científica em Medicina” [2].
IC e Pesquisa Básica: o Primeiro com Contato com o Método Científico
A primeira etapa da elaboração de um projeto de pesquisa é o extenso levantamento bibliográfico, a fim de que a ideia inicial do aluno possa então ser executada.
Essa busca ativa por evidências que sustentem sua ideia inicial impulsiona não apenas aquisição de novos conhecimentos, mas também o desenvolvimento de habilidades como autonomia e autodidatismo nos estudos, auxiliando o aluno a perder o medo do desconhecido e a dependência do seu orientador.
Além disso, a leitura frequente de trabalhos de alta qualidade, como os artigos científicos, cria no estudante um senso de criticidade maior em relação à veracidade das informações que lhe são repassadas, de modo que ele aprende a questionar, selecionar e apontar os pontos fortes e fracos das publicações no meio acadêmico [2]. Tal competência é elementar para o graduando de Medicina, que muitas vezes se depara com um grande volume de informações repassadas ao longo do curso sem atentar-se para a fidedignidade ou grau de evidência desse conhecimento.
Pode-se dizer também que a leitura de bons trabalhos feita pelos alunos de IC agiliza a apreensão das noções básicas do método científico, especialmente quanto às metodologias aplicadas na pesquisa básica. Isso porque muitos dos protocolos experimentais podem ser replicados ou adaptados de acordo com o objetivo do experimento e infraestrutura do laboratório, familiarizando ainda mais o discente de Medicina, que na maioria das vezes não tem contato com as técnicas empregadas em laboratório, com a etapa de execução do seu projeto. Nessa fase, é importante a leitura atenta da seção “materiais e métodos” dos artigos científicos, publicados em revistas ou periódicos médicos, como o PubMed, base de dados ligada à Medline e que detém a maior quantidade de informações científicas na área médica atualmente.
Laboratório Experimental: uma Vivência Multidisciplinar
Uma das principais vantagens de participar de um laboratório com ênfase na pesquisa experimental é a oportunidade de convívio com alunos de diversas graduações, como cursos da área da saúde ou biológicas, bem como com estudantes de distintas titulações, como mestrado e doutorado.
Por mais que as demais graduações se diferenciem em seus objetivos de atuação profissional, certos eixos de conhecimento acabam sendo comuns a todos, a exemplos de disciplinas básicas como anatomia, fisiologia e farmacologia, áreas ofertadas em cursos como Biomedicina, Ciências Biológicas, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina. Tal visão ampla da ciência é importante para o estudante de Medicina, o que auxilia a manter uma relação de respeito pelos demais colegas e a compreender o caráter multidisciplinar e complementar do conhecimento.
Outras habilidades acabam sendo também requeridas dos alunos de IC ao longo do tempo, como conhecimentos básicos em bioestatística, essenciais na compreensão dos testes a serem aplicados em cada experimento, interpretação de gráficos, plotagem de dados, dentre outros, noções que, infelizmente, pouco são aprofundadas nas disciplinas de metodologia científica da faculdade. A chance de desenvolvimento da escrita científica, seja por meio de relatórios, artigos ou seminários, bem como a experiência de correção desses trabalhos pelo orientador, acaba também somando para a visão autocrítica do aluno, a fim de que esse possa aprimorar ainda mais sua expertise.
Dessa forma, é evidente que a IC apresenta um papel ímpar para o aluno de Medicina, fornecendo-lhe bases para o pensamento crítico e contribuição intelectual para a comunidade científica. Assim, é elementar que a ciência no Brasil, apesar da hostil realidade, não seja desvalidada, muito menos desacreditada pelas mãos e cérebros brilhantes que contribuem e empenham grandes esforços em seu desenvolvimento. Que a busca humana pelo conhecimento, como preconizado por Francis Bacon, permaneça movendo a ciência pelos séculos vindouros.
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Referências
1.Batista GA. Francis Bacon: para uma educação científica. Rev Teias 2010;11:163–84.
2. Pesquisa básica e pesquisa aplicada. Disponível em: https://codemec.org.br/geral/pesquisa-basica-e-pesquisa-aplicada/
3. Silva LFF da. Iniciação científica – contexto e aspectos práticos. Rev Med 2012;91:128. https://doi.org/10.11606/issn.1679-9836.v91i2p128-136
4.Cortes na ciência: ‘esperança é sobreviver ao governo’, diz ex-presidente do CNPq. Disponível em: https://www.abc.org.br/2021/10/25/cortes-na-ciencia-esperanca-e-sobreviver-ao-governo-diz-ex-cnpq/