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Lado A e Lado B

Lado A e Lado B
Fernanda Bianca Paes Gulinelli
out. 6 - 8 min de leitura
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Hoje foi um dia bem típico de trabalho. Às  5:50 acordo, tomo  banho, saio de casa seis e meia .  Às 7 da manhã  entro no hospital , engulo um café em cinco minutos , me paramento e entro na UTI .

Hoje tenho nove  pacientes sob meus cuidados . Todos com Covid-19 . Examino cada um deles, checo exames de sangue, prescrição, faço os ajustes necessários. Passamos uma visita multidisciplinar para alinhar as metas do dia . Por volta de meio dia recebo o décimo paciente. Está relativamente estável. Admito, solicito os exames necessários, otimizo o tratamento.  Converso pessoalmente com os familiares  e passo notícias dos pacientes.

Almoço em meia hora. Sou chamada de volta a UTI . O paciente ainda está dispnéico. A fisioterapeuta se encarrega da otimização respiratória. A paciente ao lado sangra a cântaros. Exame de urgência. Preparo sedação, acompanho o exame a beira leito por quase duas horas. Tensão! Saio do quarto , um idososinho está muito agitado . O médico. O outro paciente deve ser retirado de posição Prona. Somos 6 mulheres no quarto. Nós preparamos todo o quarto, isolamos os dispositivos do paciente, leva bastante tempo . Em dois minutinhos tiramos paciente da posição Prona. Super trabalho em equipe. Somos mulheres fortes. Mas fortes mesmo !!

O paciente que foi admitido piora. Precisa ser entubado. Converso com ele. Explico o que farei. Ele me olha com medo e me pergunta se avisei sua esposa. Sim, avisei . Peço que confie em mim, que logo mais tudo estaria feito e ele não teria mais falta de ar. Ele pega na minha mão direita com força. Me agradece mesmo com toda falta de ar. Põe a mão no meu rosto e diz: "Deus te abençoe"
Essa parte me dói. Quantas vezes nesta pandemia meus olhos foram as últimas imagens  que alguns pacientes tiveram em vida? Já não sei mais. Perdi a conta. Sim, meus olhos . Não foi nem meu rosto, já que este  está coberto quase que em totalidade pela máscara e touca. Só enxergam meus olhos. Por isso tenho tanto gosto em sorrir com os olhos. Tento transmitir força, empatia e tranquilidade. Ele sorri quando eu brinco: - Relaxa,  Seu F.!! Aqui são 17 anos de UTI... este tubo estará aí num piscar de olhos e o senhor não vai sentir nada. Cumpro minha promessa. Ele é sedado e entubado. Tem veias e artérias acessadas. 

Me sento para descrever tudo o que fiz e para checar exames que fui pedindo durante o dia, faço o ajuste fino. Esse foi o lado A da UTI... O lado que eu tanto amo. Que desperta o Melhor de mim. A médica calma, assertiva, destemida e empática.

E então entra na UTI uma moça com uns bons 12 anos a menos que eu. Entre meu CRM e o dela existem uns 50 mil médicos e muitos anos. Ela me olha de cima, se apresenta, diz qual sua especialidade. Seu ar arrogante não me deixa dúvidas do que vem depois. Ela me questiona grosseiramente sobre o motivo que me levou a dizer para uma família que seu ente querido estava grave (Eu disse grave porém ele estava gravíssimo).

Bem , talvez por que ele esteja entubado, chocado, infectado  e dependente de ventilação mecânica sem possibilidade de desmame e em uma UTI ?


Ela me diz mais uma vez qual sua especialidade e o tanto de vezes que já presenciou pacientes assim saindo do hospital (sim, eu também já vi, mas meu dever é ser correta e verdadeira com a família ). Me pergunta se eu li sua evolução.

Digo que não. Que não tenho tempo de ler o que todos os médicos escrevem senão a assistência aos pacientes ficaria prejudicada . Seu ego hiperbólico fica ferido. Digo que preciso que cada médico que venha passar visita no paciente me fale o que fez ou deixou de fazer. Me ajudaria muito. Então ela me dá ordens . Me manda prescrever isso e aquilo - ela também tem senha e cadastro no sistema, como eu... Me manda pedir exames. Me retira do meu lugar de colega de profissão e me reduz a alguém que está lá para servir a ela. De preferência calada, e sem questionar aquilo que leva meu nome e meu CRM embaixo. Em sua concepção estou lá para atender a ela e não ao paciente.

Ela não me conhece. Desconhece meus esforços. Não sabe que faculdade cursei, tampouco que tenho duas especialidades e em ambas sou titulada pelas associações médicas responsáveis . Elas me outorgam não um, mas dois títulos de especialista. E ela não sabe a que custo eles foram obtidos. Não sabe do que abdiquei nem o quanto estudei. Para ela, sou apenas a intensivista. Aquela que não tem especialidade nenhuma e que serve para cumprir ordens. Que não tem direito a opinar sobre o tratamento do doente. Ela permanece na UTI exatos 18 minutos. Estou lá há 12h somente hoje, fora os demais dias. Em 18 minutos ela prescreveu dois medicamentos que não fariam a menor diferença no tratamento do paciente. Ela não atina para o fato de que sou eu que cuido do paciente e quem o conhece em profundidade. Sim.  Me lembro em linhas gerais  de todos os exames desde a admissão. Acompanho a evolução  muito de perto. Fiz todos ou quase todos os procedimentos necessários para garantir que ele sobrevivesse. E para isso me dedico infinitamente mais que 18 minutos. Ela conheceu o paciente anteontem .

Ela é só um exemplo. Ela não é exceção. Ela é a regra. Todos os dias os intensivistas brasileiros se deparam com esta situação desgastante, desagradável. Somos tidos  como médicos sem serventia exceto cumprir ordens dos “ donos “ dos pacientes e aturar seus arroubos de arrogância  de boca fechada. Engolindo cada palavra como um soco no estômago  e tendo que nos calar para preservar nossos empregos e sustentar nossos filhos. Sim, temos medo de demissão, de retaliações. 

Somos tidos como profissionais de segunda categoria. Médicos sem especialidade. Fracassados na profissão. Que não tiveram outra escolha a não ser trabalharem como plantonistas. Somos párias na comunidade médica, sem direito a usar todo nosso conhecimento, prática e experiência  em prol do paciente. Exceto é claro quando tudo piora e nós somos chamados para tentar salvar a vida deles. Somos os “sem terra" da medicina. E talvez por isso eu ande tão cansada. Exausta  por nadar contra a correnteza. De brigar por respeito. Por dignidade. Pelo direito de ser médica. 

Meus dias se alternam entre lado A e lado B, numa sucessão sem fim de satisfação por fazer o que amo e indignação por ser tratada de maneira tão rasa e desrespeitosa.

Espero que as próximas gerações de intensivistas não aceitem esse fardo de maneira tão passiva. Que se recusem a abdicar de seu direito de exercer a medicina intensiva com liberdade. Minha geração não verá mais isso, infelizmente . Terapia intensiva é a minha grande paixão e minha ferida mais aberta.

Espero que um dia a comunidade médica acorde para nosso valor e nos dê não somente tarefas secundárias  a serem executadas deliberadamente como servos secundários, mas  respeito e o principal, nosso direito de ser quem  somos. Os únicos especialistas que realmente tem expertise para tratar de pacientes críticos.

C est lá vie . 

Fernanda G.


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