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Medicina e objeção de consciência

Medicina e objeção de consciência
Hélio Angotti Neto
out. 26 - 6 min de leitura
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VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

 

Esse é o princípio que defende a autonomia moral parcial do médico. Reconhece que o profissional não é um autômato, um simples prestador de atos, desprovido de moralidade própria e de convicções. Também reconhece que o médico tem a liberdade de recusar-se a atender a determinados pacientes, dentro de um contexto no qual a prática pode ser prejudicada por condições inadequadas de trabalho e relacionamento.

Uso a expressão autonomia moral parcial porque há limites para o princípio em questão. Em casos de urgência ou emergência, quando a vida do paciente está em risco e na falta de outro médico, é obrigação profissional e moral atender ao paciente, seja ele quem for ou em que condição estiver.

A última proposição já insere elemento subjetivo demais no princípio ao enunciar que o médico deve atender ao paciente quando a recusa trouxer danos à sua saúde. Há necessidade de definir melhor os termos.

Se por saúde se entende completo bem-estar físico, psíquico e social do indivíduo e não apenas a ausência de doenças – uma utópica definição da Organização Mundial da Saúde, sem dúvida – consequentemente haveria de se considerar que todo atendimento ao paciente é obrigatório sempre, pois qualquer recusa poderia trazer dano psicológico a um paciente hipersensível.

Por outro lado, se a última proposição é considerada em relação direta com o conceito de urgência ou emergência, no qual a falta de atendimento levará a importante risco de morte ou de perda grave de função física, o princípio adquire sentido mais preciso.

Nos modelos de relação entre médico e paciente, há diversas propostas possíveis, incluindo as três seguintes:

  1. Paternalismo forte: o médico comanda a relação e dita ao paciente o que deve ser feito sem se explicar ou informar adequadamente, tratando o paciente como um ser desprovido de autonomia. Essa condição é indefensável, embora ocorra por diversas vezes em relações disfuncionais.
  2. Autonomia unilateral do paciente: também configura relação disfuncional, na qual o paciente crê estar em condição de exigir do médico qualquer procedimento que considere desejável, mesmo contra as advertências técnicas do profissional e contra as melhores evidências científicas. Tal postura despreza o status moral do médico tanto quanto a anterior despreza o status moral do paciente.
  3. Relação deliberativa interdependente: é o meio termo desejável, no qual médico e paciente pactuam uma decisão em comum orientada para o bem do paciente, sem ferir a moralidade médica. Dizer isso não é menosprezar o elemento de perda de autonomia que a doença traz ao paciente, nem remover a responsabilidade do médico. O que se deseja ressaltar é a autonomia moral de ambos os lados da relação médico-paciente.

Almejar o meio termo não resolve todos os problemas. Tome-se o Brasil, por exemplo, onde há financiamento público da saúde. Na questão do aborto, alguém poderia afirmar que deveria ser liberado. Poderiam dizer: cada médico que assuma um posicionamento individual no qual decidirá se atende ou não a casos de abortamento voluntário. Porém, o problema muitas vezes não está na incompatibilidade entre perspectivas morais do médico e do paciente; o simples fato de utilizar dinheiro público para um ato considerado moralmente inaceitável para grande parcela da população causa repúdio. Mesmo que médico e paciente concordem em realizar um abortamento ou um homicídio infantil, a utilização de dinheiro público nessa relação equivale a dizer que pessoas francamente opostas ao ato foram obrigadas a contribuir e, de acordo com alguns, tornarem-se cúmplices do extermínio de vida humana.

E nos países nos quais o abortamento voluntário já é liberado?

Há, cada vez mais, pressão para supressão da cláusula de objeção de consciência por parte dos médicos. Diversos bioeticistas defendem que o médico deve dobrar sua moralidade à moralidade estatal e oferecer todos os serviços de “saúde” autorizados pelo Estado ao paciente que busca o serviço público. Segundo eles, “num serviço público, de acordo com a norma técnica, o médico responsável é obrigado a fornecer o abortamento.”[1] Afirmam também que

Se você é um médico ginecologista e não quer fazer abortamentos, é como um policial que não usa armas, e deve parar de exercer sua profissão.[2]

Sua justificativa é que a saúde é um bem social, praticada somente por meio de concessão estatal. Mas há um non sequitur nesse encadeamento lógico.

O fato de se trabalhar por meio de concessão estatal e de se prestar um serviço à comunidade – seja em caráter público, seja privado – não nos leva à conclusão de que os valores implicados em tal trabalho devam ser os mesmos da elite ou até mesmo os da massa. Há uma perigosa submissão dos valores profissionais aos elementos políticos do momento, o que pode ser a porta de entrada de muitos horrores e sofrimento, como observado nos terríveis exemplos da medicina nazista e da medicina comunista.

A medicina carrega uma moralidade própria, e constitui uma comunidade moral, na qual aqueles que professam seus valores devem defendê-la contra moralidades alienígenas ao projeto médico hipocrático.

Mesmo que a pena de morte, o suicídio assistido, o homicídio infantil ou o abortamento voluntário sejam instaurados, a consciência e a integridade moral dos médicos que seguem a linhagem hipocrática devem ser resguardadas como um precioso bem.

 


[1]SAVULESCU J. ‘Conscientious Objection in Medicine’. Brittish Medical Journal, vol.332, 2006; p.294-297.

[2]VATTIMO G. Nihilism and Emancipation. New York: Columbia University Press, 2004.


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