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Medicina em tempos de Terra plana

Medicina em tempos de Terra plana
Ricardo Esper Treml
jan. 25 - 9 min de leitura
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O embate epistemológico, reflexão dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências(1), marca o início da era moderna, da ciência e da medicina moderna. Essa transição, foi marcada por intensos debates filosóficos em busca da verdade absoluta, conhecimento pleno e discussões de como seriam as melhores formas de atingir certa precisão na assim chamada, e recém-criada terminologia, ciência. Duas vertentes dominam o palco de tais debates filosóficos: Racionalismo versus Empirismo (Grandes exemplos de filósofos destas duas vertentes foram René Descartes e Francis Bacon, respectivamente)(2) . O resultado de tais disputas marcaram o início da revolução científica formando as bases e os pilares do que chamamos hoje de método científico(3, 4).

De fundamental importância e, contemporânea à revolução científica, a revolução da imprensa iniciada pela invenção do processo de produção em massa da informação, criado pelo alemão Johannes Gutenberg, foi decisiva para a propagação do conhecimento e do método científico de forma clara evitando o viés de interpretação e transferência de informação, uma vez que os manuscritos e recém redigidos artigos científicos poderiam ser impressos a partir do documento original sem influência de um intermediário transcritor(5). Atualmente, na idade contemporânea, a medicina encontra-se diante de uma pandemia causada pelo novo vírus SARS-CoV-2(6), e ao lado dela, enfrenta o negacionismo e o nascer da chamada pseudociência, propagados e impulsionados através da mais recente revolução: a revolução digital.

Diante de uma pandemia que vem causando milhares de mortes mundo a fora, nós, profissionais da saúde, temos ainda que enfrentar uma crescente e cáustica pseudociência(7). Essa nova vertente usa inadvertidamente conceitos e premissas da própria ciência para deturpar fatos e propagar a desinformação. De forma análoga ao ‘’Terraplanismo’’, a medicina defronta-se com pseudocientistas, na maioria das vezes colegas médicos, que usam imprudentemente sua profissão como premissa para poder expor sua opinião negacionista ou deturpar fatos científicos através da pseudociência. Ao contrário do terraplanismo, porém, a pseudociência e o negacionismo matam e são sem sombras de dúvidas, um verdadeiro perigo ao coletivo (8).

Sem precisarmos ir tão longe no tempo, podemos trazer um exemplo de outra pandemia para expor o quão perigoso a desinformação pode ser. Durante a pandemia do vírus HIV, Thambo Mbeki, o então presidente sul-africano (entre 1999 e 2008) ficou conhecido infamemente pela sua negação no nexo de causalidade entre o vírus HIV e a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Suas políticas incentivaram pesquisas infundamentadas em terapias alternativas, como a prescrição de alho e suco de limão para o tratamento da AIDS, bem como politicas restritivas ao acesso a medicação antirretroviral para pacientes com HIV. Estima-se que 330.000 mortes poderiam ter sido evitadas caso as medidas adequadas, baseadas em evidência, tivessem sido implementadas naquela época (8).

Atualmente, vimos no decorrer da pandemia do SARS-CoV-2 a geração, através da revolução digital, de inúmeros médicos ‘’influencers’’, profissionais de saúde ou não, disseminando informações tão desprezíveis quanto àquela prescrição acima citada para a pandemia da AIDS. Profissionais que deturpam o termo medicina baseada em evidências com o provável objetivo de obter promoção da imagem pessoal, enriquecimento e lamentavelmente em alguns casos também, por viés político, desacreditando e fazendo-se desacreditarem  em pesquisas revolucionárias como a das vacinas por (mRNA)(9).

Diferentemente do que representou a revolução da imprensa de Gutenberg para a ciência, a revolução digital consegue propagar e impulsionar informações errôneas de forma exponencial. O acesso e a propagação da informação nunca foi tão rápida devido à facilidade que a internet proporciona, no entanto, ela proporciona também a facilidade na distribuição de muita desinformação.

A prática da medicina deve ser sempre pautada na melhor literatura disponível, isso traduz-se na prática clínica chamada: Medicina Baseada em Evidências (10). A geração de evidência em qualquer ciência é adquirida através de um método cientifico de comprovação sistemática de hipóteses(3). Não são todos os trabalhos científicos que são capazes de gerar evidências robustas o suficientes para mudar a prática clínica ou para estabelecer nexo de causalidade entre uma enfermidade, um sintoma ou uma reação adversa. A evidência gerada depende diretamente do tipo de estudo realizado, mas, mais importante, da metodologia cientifica aplicada ao estudo. Todos os estudos realizados estão sujeitos a limitações de vários aspectos (exemplos: viés de seleção, performance, detecção e etc.). Sendo assim, é de suma importância a correta interpretação dos artigos publicados.

Em tempos revolucionários de informação quantitativa, temos a obrigação, como médicos, de filtrar e interpretar corretamente as mais atuais publicações e saber que a evidência gerada através destes estudos têm um nível de evidência que irá determinar um grau de recomendação (figura 1). Talvez hoje com o rápido crescimento dos pseudocientistas dentro da medicina gerando crenças e hipóteses infundadas devemos dar mais valor à disciplinas na formação médica como a Epidemiologia e a Metodologia Científica, pois de acordo com um estudo realizado pelo instituto de Neurociências da Universidade de Barcelona na Espanha e outros estudos realizados pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, publicados na revista Nature, não somente a geração de teorias baseadas em pseudociência podem ser perigosas, mas também o não combate científico a essas aberrações acadêmicas podem ter consequências devastadoras (7, 11).

 

A ciência é um processo sistemático e que requer tempo. Em especial na área da medicina, pois a função de todas as pesquisas tanto experimentais como clínicas é melhorar a prática clínica para que ao final, os pacientes tenham melhores desfechos clínicos, seja pelo desenvolvimento de novas formas de detecção precoce de doenças ou pelo desenvolvimentos de novos medicamentos, procedimentos e vacinas.

Ainda nesta vigente pandemia do SARS-CoV-2 a ciência se mostrou resiliente e vem conseguindo prevenir desfechos graves desta doença  através da vacinação (12, 13). Além disso, pouco a pouco, mitos criados por tais pseudocientistas, como infertilidade relacionada a vacina mRNA, risco aumentado em vacinação de crianças na faixa etária de 5 a 11 anos e maior risco de complicações cardiovasculares ocasionadas pela vacina que pela própria doença causada pelo SARS-CoV-2 vem caindo pela realização de pesquisas sérias (14-16) que trazem clareza e desmistificam alegações falsas produzidas pela desinformação.

A ciência não é plana como a terra habitada por tais colegas pseudocientistas e, sim, plena. É dever médico evitar a propagação de informações acadêmicas falsas. Caso contrário, não será respeitada uma das partes do juramento médico e do código de bioética, vinda de Hipócrates, do Latim ‘’Primum non nocere’’ que significa em português: primeiro não prejudique. Induzir o coletivo ao erro com consequências deletérias a saúde é um ato iatrogênico.

 

Referências                                                     

1. Tesser GJ. Principais linhas epistemológicas contemporâneas. Educar em Revista [online]. 1994:pp. 91-8.

2. Eastwood BS. Mediaeval Empiricism: The Case of Grosseteste's Optics. Speculum. 1968;43(2):306-21.

3. Defining the scientific method. Nature Methods. 2009;6(4):237-.

4. Descartes R. A discourse on method / by Rene Descartes. London: J. M. Dent; 1920.

5. Cherry C. The Scientific Revolution–and Communication. Nature. 1963;200(4904):308-12.

6. Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. New England Journal of Medicine. 2020;382(8):727-33.

7. Rodríguez-Ferreiro J, Barberia I. Believers in pseudoscience present lower evidential criteria. Scientific Reports. 2021;11(1):24352.

8. Debunking science denialism. Nature Human Behaviour. 2019;3(9):887-.

9. Buschmann MD, Carrasco MJ, Alishetty S, Paige M, Alameh MG, Weissman D. Nanomaterial Delivery Systems for mRNA Vaccines. Vaccines. 2021;9(1):65.

10. Heneghan C, Mahtani KR, Goldacre B, Godlee F, Macdonald H, Jarvies D. Evidence based medicine manifesto for better healthcare. BMJ. 2017;357:j2973.

11. Van der Linden S. Countering science denial. Nature Human Behaviour. 2019;3(9):889-90.

12.  Arbel R, Hammerman A, Sergienko R, Friger M, Peretz A, Netzer D, et al. BNT162b2 Vaccine Booster and Mortality Due to Covid-19. New England Journal of Medicine. 2021;385(26):2413-20.

13.  Bar-On YM, Goldberg Y, Mandel M, Bodenheimer O, Freedman L, Alroy-Preis S, et al. Protection against Covid-19 by BNT162b2 Booster across Age Groups. New England Journal of Medicine. 2021;385(26):2421-30.

14.  Chen F, Zhu S, Dai Z, Hao L, Luan C, Guo Q, et al. Effects of COVID-19 and mRNA vaccines on human fertility. Human Reproduction. 2022;37(1):5-13.

15.  Walter EB, Talaat KR, Sabharwal C, Gurtman A, Lockhart S, Paulsen GC, et al. Evaluation of the BNT162b2 Covid-19 Vaccine in Children 5 to 11 Years of Age. New England Journal of Medicine. 2021;386(1):35-46.

16.  Barda N, Dagan N, Ben-Shlomo Y, Kepten E, Waxman J, Ohana R, et al. Safety of the BNT162b2 mRNA Covid-19 Vaccine in a Nationwide Setting. New England Journal of Medicine. 2021;385(12):1078-90.

 

As imagens utilizadas nesta publicação pertencem ao acervo de R.Treml, disponível em BioRender.com


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