No meu tempo de faculdade, a série médica famosa era o ER ou o antigo Plantão Médico. O doutor Mark Greene se aproximava dos familiares e comunicava que apesar de todos os esforços terem sido realizados, a pessoa havia morrido. No seriado as pessoas aceitavam a informação de maneira complacente.
Eu nunca tive uma aula para aprender a comunicar más notícias, então imitei a série. E deu errado!
Eu era estagiária voluntária num pronto-socorro e pelo que me lembro estava no segundo ano do curso de medicina. Me vestia de branco, assim como as outras pessoas que ali trabalhavam, mas não tinha a experiência profissional ou de vida.
Num daqueles plantões chegou um senhor infartando. Era muito grave e instável desde a entrada no pronto-socorro. No meio do atendimento aconteceu a parada cardíaca. Massagem cardíaca, estresse, adrenalina, gritaria, choque e repete tudo de novo. Meia hora depois a equipe compreendeu que ele morreu. Alguém pronunciou a hora da morte e um dos médicos recomendou que eu fosse falar com a família.
Quem foi o irresponsável que permitiu uma acadêmica comunicar uma morte? Eram outros tempos... Eu não questionei, apenas fui.
Hoje compreendo que aquele momento mudaria a vida daquela família e, possivelmente, direcionou a minha vida profissional. Peço desculpas àquelas pessoas pelo estrago que minha inexperiência profissional pode ter gerado, mas aprendi muito nestes quase vinte anos de medicina. Conto hoje essa história como uma excelente maneira de não comunicar más notícias.
Abordei a esposa e o filho do paciente e me certifiquei que falava com as pessoas certas. Os convidei para irem ao consultório e acho que essa foi a única coisa certa que fiz naquele dia. Essa etapa considero que podem repetir.
Meu primeiro erro foi explicar toda a situação de maneira técnica e a imaturidade de uma estudante não permitia perguntar o que eles compreendiam ou o que esperavam ouvir. Não sintonizei as pessoas na informação catastrófica que viria na sequência.
O segundo erro foi partir para a frase do título do texto. Achei que havia chegado a hora e disse: “Sinto muito, infelizmente o paciente foi a óbito.”
As pessoas reais não repetiram o que os atores faziam no seriado. A esposa gritava e fazia perguntas que não tinham respostas. O filho chorava e esmurrava a parede.
Eu não tinha um manual, guideline, livro, episódio do ER, preceptor ou experiência de vida para lidar com a comunicação de más notícias que se desenhava na minha frente. Diante da insegurança assumimos a postura defensiva, nos apoiamos no que é seguro. No caso do médico a zona de conforto é a ciência. E falar mais sobre reanimação e fármacos geralmente não conforta as pessoas.
Esse foi o terceiro erro e sugiro que diante de pessoas reais, sejamos humanos. Compreenda a dor do outro nas palavras e no comportamento. Não dê conselhos. Apenas fique lá. Não tem palavra certa para isso tudo, mas tem atitude empática. Escute.
Aquele dia aconteceu em 1999 e me recordo melhor de cada momento daquele dia do que o que vivi semana passada. Naquele dia entendi que teria que viver MUITA coisa como médica e pessoa para lidar com amor, morte súbita e luto. Entendi que pessoas de verdade tem emoções de verdade. Que eu precisava ser a pessoa para acolher alguém que está enfrentando uma morte inesperada na família. Nenhuma frase técnica me salvaria.
A esposa daquele paciente acordou como se fosse um dia qualquer. Talvez tomaram um café e conversaram sobre os filhos, as contas e o futuro. Ou talvez fizeram amor pela última vez. Definitivamente aquele não foi um dia qualquer na vida deles.
Depois de presenciar o desespero diante dos meus olhos, optei inicialmente por uma especialidade que não permitisse a morte de pessoas. Eu não queria ter que comunicar as falhas da medicina.
Errei feio neste caminho. Pessoas morrem mesmo quando a medicina acerta.
Depois de muitos tropeços na onipotência, redirecionei a carreira para uma especialidade que as pessoas morrem e eu posso ser humana: a Medicina Paliativa.
Morrer não é fracasso. Não cuidar de quem morre ou abandoná-las à própria sorte que é um fracasso.
Hoje em dia, lido com pessoas acamadas, com a perda de funcionalidade, com a promoção de autonomia, inclusão de valores e trato quem tem sofrimentos. E elas também morrem com qualidade enquanto ainda estão vivas.
Quem pensa que paliar é “não tem mais nada o que fazer” deveria trabalhar um dia com a nossa equipe.
A gente começa o dia cuidando de pessoas com sinais vitais instáveis, acolhemos as famílias, fazemos plano de cuidados avançado e individualizado que mais parece um mapa do tesouro escondido, antecipamos ações em saúde para evitar sofrimentos, manejamos falta de ar, dor e outros sintomas. Corremos para acolher aquele paciente que complicou de maneira inesperada, depois telefonamos para aquela filha que ficou angustiada, acolhemos o luto, visitamos aquele paciente que tem insônia e medo de morrer, fazemos uma reunião de família para estruturar uma desospitalização segura, ligo para outro médico para assumir um caso novo, entramos em reunião da equipe para falar sobre indicadores de performance, etc, etc...
Tem visita dos cachorrinhos que são parte da família e fazem tanta falta durante o internamento. No final do dia levamos paciente para ver o mar e o sol poente pela última vez. Às vezes tem casamento, formatura ou batizado. Já teve até alta temporária para ir ao show em estádio.
Esses retratos dos Cuidados Paliativos que as redes sociais propagam são lindos, dão sentido à vida e eu já chorei de emoção incontáveis vezes. Mas é importante contar que tem muito trabalho de bastidor como ajuste da medicação correta, controle de sintomas desconfortáveis e comunicação adequada para aliviar sofrimentos de toda ordem. Estamos longe do clichê “não tem mais o que fazer”.
Caro leitor, se isso tudo que contei até aqui ainda significar “não tem mais nada mais o que fazer”, por favor, faça esse “nada” para todas as pessoas que encontrar no fim da vida.
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