Acredito que faltam comprovações científicas que apontam o câncer sendo responsável pelas ações humanas, como as manobras políticas e econômicas
Por Felipe Teles*
Imagine-se caminhando à meia noite pelas ruas de uma cidade europeia do século XV. A rua parece deserta e está encoberta por uma espessa neblina. De repente, caminha contra sua direção um indivíduo com traços monstruosos: dedos longos, com unhas que mais se parecem com garras; pele albina, grandes globos oculares que reforçam um olhar penetrante e faminto; dentes à mostra e pontiagudos, principalmente os caninos. Ao avançar o passo numa tentativa de bater em retirada, você percebe que essa pessoa começa também a correr. Porém, sempre que possível evita a luz, mesmo que sejam as fracas chamas dos candelabros pendurados nos postes das calçadas.
Em se tratando de literatura, confio que muitas pessoas apontariam o indivíduo como um possível vampiro. Porém, se a medicina do século 15 estivesse tão avançada quanto a contemporânea, seria mais correto afirmar que a tal pessoa é apenas um paciente acometido pela porfiria. Esse é um exercício mental que exemplifica como as doenças podem influenciar o conceito e até mesmo a cultura de uma sociedade. Com o câncer a coisa não é diferente. É por isso que, diante tanta informação e ciência, nos vemos na urgência de transformar a forma como as pessoas lidam e se referem a essa doença.
“Conseguimos acabar com um câncer”, essa foi uma frase pinçada de uma manchete jornalística. A reportagem apresentava a reação e opinião de alguns políticos sobre a saída de um colega do cenário. O “câncer”, no caso, foi usado para se referir, de forma pejorativa, ao parlamentar. O que a matéria não apresenta são dados que comprovam que o câncer, como doença, é o responsável por qualquer tipo de atitude ilícita cometida pela personalidade. Aliás, a frase remonta ao período histórico em que doenças complexas eram tidas como bestialidades sobrenaturais ou castigos atribuídos por divindades e seres de mundos mitológicos.
Quando um político é apontado como corrupto ou um empresário é investigado por alguma ilicitude, o câncer pouco tem culpa.
Aqui não estamos traçando uma defesa do câncer ou qualquer outra enfermidade. Pelo contrário, todo tipo de distúrbio molecular gera uma infinidade de problemas à saúde e bem-estar dos indivíduos. Invariavelmente, a morte é uma das consequências. Contudo, muitos pacientes com câncer percebem o quão avançados são os tratamentos modernos. Todo o processo transformador faz com que essas pessoas mudem seus hábitos, busquem por melhor qualidade de vida e, quando a cura é certa, adotam um estilo mais sustentável e em equilíbrio com as funções e limites do corpo.
O que não encontrei ainda na literatura médica e nas notícias são relatos de que o câncer impôs ao indivíduo a necessidade de cometer uma improbidade administrativa, macular com o estado democrático de direito ou submergir ao mundo das falcatruas e desvios de verba.
Mais ciência
Na medicina, tratamos um paciente oncológico não porque ele está na iminência de agir contra as leis e em desfavor dos limites socioculturais. Na verdade, as doenças não escolhem sexo, etinia ou se quer fazem distinção de padrões financeiros. E, por isso, oferecemos assistência a todos com a mesma igualdade - mesmo aqueles que comprovadamente agiram contra os padrões da legalidade. Sendo assim, muito incomoda ouvir e ler frases que relacionam o câncer a ações e falhas humanas.
Apesar de toda a sua complexidade, as células cancerígenas não evoluíram o suficiente para, sozinhas, terem conexões neurais tão poderosas ao ponto de revolucionar o comportamento dos pacientes e torná-los políticos ou autoridades desonestas.
O conde Drácula pode ter sido apenas uma pessoa que sofreu os mais aparentes sintomas da porfiria ou hidrofobia. E por isso, pela falta de informação na época, foi erroneamente julgado e assim transformado em personagem da literatura. Mas, quando um político é apontado como corrupto ou um empresário é investigado por alguma ilicitude, o câncer pouco tem culpa.
Ou talvez devêssemos nos debruçar em pesquisas científicas que comprovem o contrário e, assim, inocentar esses tão injustiçados possíveis pacientes oncológicos. Até lá, o mais providencial é informar melhor as pessoas para que mudem a forma como lidam com o câncer e tantas outras doenças - principalmente no sentido de preveni-las.
*Felipe Teles é radioterapeuta, com MBA em gestão hospitalar e membro da Sociedade Brasileira de Radioterapia.