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O olhar artístico como ferramenta clínica

O olhar artístico como ferramenta clínica
Matheus Scalzilli
fev. 16 - 7 min de leitura
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No início do século 20, o repertório instrumental do médico era extremamente limitado. O estetoscópio moderno já ganhava forma, o tubo laminado acústico de Laennec recebia dois fones de ouvido, mas o diagnóstico ainda era fundamentalmente clínico. [1] A inexistência de exames laboratoriais e de imagem fazia com que o exame físico e, consequentemente, os sentidos fossem as únicas armas no arsenal médico.

A capacidade de percepção do médico – sua audição, gustação, tato, olfato e visão – era basicamente sua única ferramenta disponível. [1] Com o passar das gerações, entretanto, essa habilidade tem sido, gradualmente, deixada de lado basta comparar as edições dos livros clássicos de semiologia com seus antecedentes: os sinais clínicos e manobras perdem espaço para os exames complementares e de imagem. Não há um método concreto, sistematizado para desenvolver essa habilidade, entretanto alguma instituições tem explorado uma abordagem diferente para complementar a capacidade de observação  do acadêmico de medicina: por meio das artes visuais.

O modelo de preceptoria usado classicamente para ensinar a medicina clínica busca resgatar essas habilidades fundamentais, entretanto, é limitado. Aprendemos que o exame físico começa com a inspeção, mas não aprendemos a observar.  Desde cedo sabemos que deve-se checar as mucosas na suspeita de anemia, mas não aprendemos a diferenciar uma mucosa +3/+4 de uma +2/+4 ou +1/+4. Um estudo técnico sobre cores, tonalidade e iluminação poderia potencialmente elucidar essas diferenças sutis. Inevitavelmente, após anos de prática, adquirimos a capacidade de reconhecer um mucosa hipocorada, contudo tem-se relatado que um treinamento formal na arte da observação pode catalisar esse processo.

Em 2008 um coletivo de educadores formado por professores de diversas universidades americanas (dentre elas a escola de medicina de Harvard; a Universidade de California, Los Angeles e  a universidade de Columbia) testaram uma abordagem inovadora a qual nomearam "Training the Eye: Improving the Art of Physical Diagnosis" – no português: "Treinando o olho: melhorando a arte do diagnóstico físico". O treinamento consistia em oito sessões de exercícios de observação artística que integrava conceitos técnicos da arte com tópicos do diagnóstico físico além de uma sessão de desenho eletiva. A percepção de contornos, por exemplo, foi trabalhada por meio de uma discussão em cima do “Retrato de Mulher” do Picasso e “A Voz” de Munch e esse conhecimento foi, depois, integrado a uma discussão acerca dos contornos presentes nas imagens torácicas radiológicas. Conceitos artísticos, como forma, simetria, coesão, textura e cor eram depois interligados aos assuntos médicos como as lesões elementares da dermatologia, o exame neurológico e a pneumologia. [2]

Ao final do curso os 24 estudantes de medicina do ciclo básico que participaram do programa foram comparados a um  grupo controle de 34 estudantes de mesmo nível. Os que fizeram o curso tiveram um aumento no seu número de observações, além do grau de sofisticação de suas observações tanto em relação as obras artísticas quanto os achados físicos do paciente. Foi relatado também um efeito “dose dependente” em que os estudantes que participaram de mais de 8 sessões tiveram um aumento ainda mais significativo. [2] Perry et al (2011), em linha com Naghshineh et al (2008), relata que de acordo com a literatura o treinamento na observação artística tem uma relação positiva forte com o desenvolvimento do olhar diagnóstico, entretanto, não há evidências o suficiente para afirmar o mesmo sobre outras capacidades médicas como a empatia. [3,4]

A arte de observar, é inquestionavelmente uma habilidade que tem seu valor na prática médica. Assim como a arte a medicina também surge a partir do princípio da observação – o artista brinca em cima daquilo que é observado, enquanto que o clínico observa no paciente o que há de anormal, de diferente: desde uma variação mais descarada como uma lesão de pele a uma anomalia mais sutil como um sinal de Quincke ou uma posição antálgica.  O artista, entretanto, tem em mãos mais ferramentas para comunicar sua percepção: o pincel, a tinta, o quadro, a escultura, a cor e a forma. O médico, em contrapartida, fica limitado a linguagem técnica e epônimos o que ressalta a importância de saber propriamente o que está sendo visto para que se torne mais fácil comunicar-se adequadamente.

Osler já dizia “Não há arte mais difícil de dominar do que a arte da observação, para alguns homens é tão difícil quanto comunicar uma observação com uma linguagem simples e direta.” [5]

É quase que um clichê falar que a medicina é uma arte mas há alguma verdade nos clichês. Digo que a medicina é arte porque assim como um artista contemporâneo extrapola os padrões estéticos, o médico tenta identificar aquilo que desvia do padrão fisiológico – aquilo que extrapola os limiares da normalidade. Arrisco dizer que a medicina só surge a partir da observação –  a partir de um domínio aguçado das suas faculdades sensoriais entrelaçado a um domínio técnico. Damos bastante atenção ao conteúdo técnico, que é igualmente importante, mas é preciso reconhecer e resgatar a capacidade perceptiva dos nossos ancestrais médicos. Talvez assim, no futuro, os próximos livros de semiologia serão repletos de novos sinais e manobras e não só os mais recentes exames complementares.

 


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Referencias

1- M Klugman, C., Peel, J. and Beckmann-Mendez, D., 2011. Art Rounds: teaching interprofessional students visual thinking strategies at one school. [online] PubMed. Available at: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21869658/> [Accessed 7 February 2021].

2 - Naghshineh, S., P. Hafler, J., R. Miller, A., A. Blanco, M., R. Lipsitz, S., P. Dubroff, R., Khoshbin, S. and T. Katz, J., 2008. Formal Art Observation Training Improves Medical Students’ Visual Diagnostic Skills. [online] NCBI. Available at: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2517949/pdf/11606_2008_Article_667.pdf> [Accessed 7 February 2021].

3- Perry, M., Maffulli, N., Willson, S. and Morrissey, D., 2011. The effectiveness of arts‐based interventions in medical education: a literature review. [online] ASME. Available at: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1365-2923.2010.03848.x> [Accessed 7 February 2021].

4- M. Braverman, I., 2011. To see or not to see: How visual training can improve observational skills. [online] Cid Journal. Available at: <https://www.cidjournal.com/article/S0738-081X(10)00151-3/abstract> [Accessed 7 February 2021].

5 - B. Sykes, D. and N. Nichols, D., 2015. There Is No Denying It, Our Medical Language Needs an Update. [online] NCBI. Available at: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4507913/> [Accessed 7 February 2021].


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