Vamos supor que você sonhe em seguir a carreira médica. Que com 18 anos você passe na primeira tentativa e em um dos vestibulares mais concorridos do país. Ingresse em uma das mais de 300 faculdades de medicina do Brasil e persista durante os 6 anos de curso de medicina.
Torça para entrar em uma universidade que tenha professores, sala de aula e campo de prática. Caso você seja realmente do tipo sonhador, idealize a formação para sua carreira médic em um Hospital Escola.
Sua jornada será integral, sem tempo para trabalhar, virando madrugadas de plantão e esforço. Estude dependente de um ensino médico sucateado, antiquado e que não se preocupa em formar bons médicos, mas sim em formar mais médicos, pois este é o projeto eleitoreiro defendido pelo Estado e seus sequenciais planos de governo.
Parabéns, você se formou!
Caso seja homem, adicione 1 ano de serviço militar obrigatório.
Agora, vamos supor que você queira ser cardiologista! Adicione 2 anos de Clinica médica e mais 2 anos de Cardiologia.
Após 11 mínimos anos de estudo e com 29 anos de idade, você está inserido no mercado de trabalho.
Obviamente, vamos torcer para que você tenha tido condições de sustentar o curso mais caro do país caso seja particular, ou então sua carreira médica já terá iniciado com o compromisso de pagar o financiamento.
Mas não esqueça, você passou 11 anos sendo chamado de "elitista" por não querer ir pro interior, por não querer atender os mais humildes (por mais que praticamente toda sua formação seja no SUS). Passou 11 anos sobrevivendo de BOLSA. 11 anos superando todas as mazelas de um sistema sobrecarregado, subfinanciado, idealizado pelo governo mas totalmente discrepante na realidade.
Passou 11 anos trocando o dia pela noite, fazendo 24h de plantão, dormindo em maca e acordando para atender ambulatório; passou 11 anos se desculpando pelos aniversários perdidos, pelos batismos abandonados, pelos feriados ignorados, pelas viagens postergadas; passou 11 anos trocando amigos pelo plantão e família pelos pacientes.
Finalmente, após MÍNIMOS 11 anos, você está pronto para iniciar sua carreira médica como especialista, e provavelmente a culpa do estado destroçado do sistema de saúde é sua, por mais que você não tenha feito nada além de ser resiliente, esperançoso e esforçado.
O médico não é culpado pelo estado da saúde no país, o professor não é culpado pela educação sucateada, o policial não é culpado pela criminalidade. Mas o Estado insiste em terceirizar a culpa, por mais que os seus defensores detestem esse termo.
Medicina não é sacerdócio
Essa ideia de que o médico deve retribuir o que recebeu da sociedade até tenta ser pragmática, mas é apenas limitada.
Simplesmente porque se trata a educação pública - que é paga com impostos de toda população (inclusive do médico) - como um instrumento de coerção sobre quem a usa, cria-se a ideia de uma dívida social que deve ser paga sobre a forma de cabresto profissional.
"Se você estudou em faculdade pública e “de graça”, é sua obrigação retribuir para a sociedade, sendo forçado a prestar o serviço que ela demanda."
Como se houvesse um direito social sobre nossa força de trabalho, e que este se sobrepõe ao nosso preceito essencial de sermos livres para vender nosso trabalho, aonde e como nós quisermos.
É uma fixação problemática sobre a palavra obrigação e uma apropriação perigosa sobre a palavra direito.
É realmente muito contraditório que as pessoas acreditem que o principal passo para atingir igualdade do atendimento em saúde seja restringindo a liberdade de quem atende.
Provavelmente porque não prezem nem por liberdade, nem por igualdade.
Só prezem por elas próprias.