O direito ao acesso à saúde de forma universal e igualitária é uma garantia constitucional - artigo 196 da CF/1988 -, resguardada a qualquer cidadão brasileiro e dever do estado. Entretanto, a beleza desta assertiva constitucional contrasta fortemente com uma realidade um tanto disruptiva, no qual esse acesso, universal e igualitário, não é cumprido em sua integralidade.¹
Não raro são as notícias de falta de leitos disponíveis, filas extensas, deficiência quantitativa de medicamentos, falta de equipamentos de proteção individual, entre outros problemas, que desnudam a fragilidade de um sistema ancorado numa gestão eminentemente pública.
O público, lógico, não é ruim e deve ser sim uma prioridade. O texto constitucional garante, com todas as letras, que "a saúde é um direito de todos e dever do estado", e que assim seja! Porém, é pouco provável que um país de dimensões continentais, como o Brasil, consiga, através exclusivamente das iniciativas do poder público, gerir a saúde de 210 milhões de habitantes com qualidade, segurança e celeridade.
Aqui abro um parênteses, o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política já consagrada como de extremo sucesso, com ganhos palpáveis para toda sociedade e vital para o brasileiro. Seu valor para saúde é inestimável e seus resultados no combate a pandemia, dignos de nota.
Contudo, uma andorinha só não faz verão, ao passo que o SUS por si só não é suficiente para suprir a alta demanda por atendimento em saúde de milhões de cidadãos espalhados pelos quatro cantos do país. Aliás, isso não é uma exclusividade do SUS, pois de acordo com o relatório da OMS, nenhum país do mundo, por mais desenvolvido que seja, consegue atender todas as necessidades de saúde da população, em tempo e qualidade ideais.²
Sabendo disso, criou-se modelos de cooperação entre o público e o privado com intenção de melhorar a eficiência dos serviços prestados pelo aparelho estatal e reduzir, em parte, o grande abismo entre a utopia da letra da lei e a realidade que vivenciamos na saúde. É, em última análise, a tentativa de fazer valer na prática o que os constituintes almejaram em 1988.
Dos modelos de cooperação, vale destacar um em especial, alvo de críticas recentes, mas que já é um case consolidado Brasil a fora: As Parcerias Público-Privadas (PPP). Regulamentadas a partir da Lei 11.079/2004, as PPPs são definidas como o contrato administrativo de concessão, ou seja, contratos firmados entre o poder público e a iniciativa privada, nos quais este, mediante pagamento, presta determinado serviço àquele.³
A lei em seu corpo estabelece alguns critérios específicos para que a PPP possa ser firmada, norteando-se principalmente pelo tempo de duração do contrato, o seu valor, e qual a modalidade de serviço será realizada. Tudo isso para assegurar que, embora o serviço seja realizado pelo setor privado, seu objetivo público-social seja atingido em sua integralidade.
Um erro comum dos que não conhecem a modalidade a fundo é pensar que o Estado, ao firmar uma PPP, está “vendendo" seus bens ao setor privado e que os usuários seriam de alguma forma obrigados a pagar pelo serviço. Na realidade, o Estado continua sendo dono legítimo de todos os seus bens, mantendo o seu caráter público, e o contratado limita-se, única e exclusivamente, a prestar um determinado serviço.
Duas grandes vantagens do método é a execução rápida do serviço, uma vez que o pagamento só é efetuado após a conclusão do estabelecido em contrato, e maior descentralização do mando estatal, permitindo que o estado fique menos sobrecarregado de atividades periféricas, como realizar uma obra por exemplo.
O Brasil hoje conta com uma dezenas de PPPs bem-sucedidas na área da saúde, como nos governos da Bahia e São Paulo, além das prefeituras de Belo Horizonte (MG) e Manaus (AM), todas, claro, sem a cobrança do usuário.⁴
Um exemplo de sucesso de PPP aplicada à saúde é o Hospital Subúrbio, localizado em Salvador (BA), e descrito, em estudo publicado internacionalmente por Maria Joachim, como um hospital de elevado nível de excelência; o que demonstra a efetividade do método.⁵ Também, somam-se estudos a favor da união entre o público e privado, alegando que, quando bem administradas, as PPPs são um importante instrumento viabilizador da política de reforma, pois permite maior eficiência e eficácia nas atividades estatais.⁶
Ainda, Gustavo Justino de Oliveira, especialista em direito administrativo, é categórico ao afirmar que as PPPs estão intimamente ligadas com respostas mais rápidas e adequadas aos anseios da população, instalando um ambiente favorável ao desenvolvimento.⁷
Assim, fica patente que parcerias público-privadas, além de uma prática consolidada e com belos resultados colhidos ao longo do tempo, são essenciais para o desenvolvimento da área da saúde e em nada se assemelham com a falsa alegação de “privatização" do SUS. Pois como bem pontua Claudio Lottenberg, em coluna publicada na Veja, ao cidadão interessa saúde de qualidade, pouco importando se quem prestará o serviço é o poder público ou iniciativa privada.⁸
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Referências
[1] Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988
[2] Relatório Mundial da Saúde. [homepage na internet] Financiamento dos Sistemas de Saúde: O Caminho para Cobertura Universal. Disponível em: https://www.who.int/eportuguese/publications/WHR2010.pdf?ua=1
[3] Lei 11.079/2004 -Licitação e Contratação de Parceria Público-Privada no Âmbito da Administração Pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm
[4] Barbosa, Antonio Pires, & Malik, Ana Maria. (2015). Desafios na organização de parcerias público-privadas em saúde no Brasil. Análise de projetos estruturados entre janeiro de 2010 e março de 2014. Revista de Administração Pública, 49(5), 1143-1165. https://dx.doi.org/10.1590/0034-7612136177
[5] Joachim, Maria. Constructing: Relationships, Human Resource Management and Culture of Quality The Case of Hospital do Subúrbio, a Brazilian Healthcare Public-Private Partnership. University of Michigan, 2020. Disponível em: https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/163172/mjoachim_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[6] Rossi, Lucilene. Parcerias entre o Poder Público e a Esfera Privada como Instrumentos de Descentralização da Ação Estatal: diferentes perspectivas. EDUCAÇÃO: Teoria e Prática, 2008. Disponível em: http://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/educacao/article/view/1870/1933
[7] OLIVEIRA, G. H. J. Parceria Público-Privada e Direito ao Desenvolvimento: uma Abordagem Necessária. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito da Bahia, nº 3, ago-set-out, 2005a. Disponível em: www.direitodoestado.com.br.
[8] Lottenberg, Claudio. [homepage da internet] Ao Cidadão Interessa Saúde de Qualidade – Pública ou Privada. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/coluna-claudio-lottenberg/ao-cidadao-interessa-saude-de-qualidade-publica-ou-privada/