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A Portaria do Estupro

A Portaria do Estupro
Leonardo Batistella
set. 7 - 4 min de leitura
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O Ministério da Saúde publicou a Portaria 2.282/2020, a qual dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS, alterando o procedimento padrão de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual.

O art. 3º da Portaria diz que o procedimento será composto por quatro fases, sendo a primeira constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado pela própria gestante, perante 2 (dois) profissionais de saúde do serviço, sendo assinado por todos.

Em resumo, a Portaria torna obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro.

Sabemos que qualquer cidadão em sã consciência deseja que um estuprador seja punido no maior dos rigores legais, pois é um crime grave e repugnante. Para a vítima desse crime, a sociedade deseja o melhor amparo possível e que o seu trauma seja minimizado, restaurando a sua dignidade. Porém, com o advento da Portaria existe um possível hiato no binômio punir o agressor e proteger a vítima.  

Em termos de punibilidade do estuprador a Portaria parece uma ferramenta hábil, e realmente acredito que seja quando o estuprador é identificado. Todavia, as consequências para a vítima de estupro podem ser tão terríveis quanto o próprio crime, tal como maior exposição e retraumazitação.

É errôneo pensar que o estuprador deixará de estuprar por saber da existência dessa Portaria. A uma, pois os elementos psicológicos que o motivam a executar tal ato certamente falam mais alto que o medo de ser punido. A duas, pois ainda é preciso que a mulher procure um serviço de saúde, seja para tratar os ferimentos do estupro seja para abortar, o que poderia até mesmo ser um incentivo para que o estuprador ponha fim a vida da vítima antes que tudo isso ocorra.

Para a vítima desse terrível crime que deseje discrição, ao saber que a equipe de saúde tem a obrigação de notificar a autoridade policial, poderá sentir-se desencorajada para buscar o serviço de saúde, seja para abortar ou simplesmente para tratar dos ferimentos decorrentes do estupro. Ou seja, essa pessoa será vitimada em dobro.

De qualquer forma, o médico tem o compromisso ético e legal de garantir o bem estar físico e mental do paciente, tendo salvaguarda para empreender qualquer esforço nesse sentido. Essas garantias profissionais estão dispostas em legislações hierarquicamente superiores à Portaria em questão, a Lei do Ato Médico é um exemplo disso, assim como o Código de Ética Médica, que apesar de não ser necessariamente hierarquicamente superior, possui maior importância e completude legislativa.

A própria Constituição Federal garante o direito à intimidade, que na presente discussão se desdobra na obrigação do sigilo profissional. Uma situação é o médico ter o conhecimento de que uma menor de idade foi estuprada e está inserida em uma família omissa, neste caso ele tem o dever ético e legal de notificar as autoridades competentes. Outra situação é saber que uma mulher maior e capaz foi vítima de estupro, a qual deseja discrição e respeito à intimidade, especialmente em um momento tão crítico que a motiva buscar proteção médica, não o oposto.

Portanto, apesar da boa intenção do Ministro Interino da Saúde ao emitir essa Portaria, as suas consequências para a vítima a tornam mais prejudicial que benéfica, ocasionando um hiato legislativo frente ao choque entre princípios e legislações acima colocadas.

Delegar para a equipe de saúde um compromisso tão importante e complexo como o de colher o relato detalhado da vítima é algo inexigível, haja vista a já importante e complexa função desenvolvida por estes profissionais. Existem outros meios legais e punitivos mais efetivos para buscar a pessoa do agressor e fazê-lo pagar pelo crime.

 


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