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Que sistema de saúde estamos oferecendo aos médicos que formamos?

Que sistema de saúde estamos oferecendo aos médicos que formamos?
Raquel Rangel Cesario
abr. 25 - 16 min de leitura
020

 

Hoje é domingo, pede cachimbo, e acordei com reflexões que quero compartilhar com vocês. Vou escrevendo enquanto se desenrola a manhã. Entre o desjejum, a conversa com o marido e os afazeres para o almoço, nasce essa conversa com vocês. Nasce como monólogo, mas com vontade de ser diálogo, ainda que assíncrono. Toda ideia nova nasce carente de contraposições. Comuniquemo-nos, pois.

A linearidade da superficialidade da contemporaneidade. Alguns anos atrás minha enteada estava estudando Boaventura de Souza Santos, um importante sociólogo português com uma produção intelectual tão vasta quanto interessante, que eu mesma ainda não li. De nossa conversa, memorizei a expressão com que inicio este parágrafo. À princípio desconcertante, engraçada, sem sentido para aqueles acostumados a textos técnicos da área biomédica, uma leitura mais atenta mostra quanto sentido tem. O pensamento linear e raso das pessoas que vivem atualmente. Está em nosso dia a dia, nas relações pessoais, familiares e profissionais; nas conversas de bar, interrompidas há um ano pela maioria de nós, devido a um vírus que veio abalar nossas certezas; nas polêmicas e viciantes redes sociais e grupos de whatsapp; nos salões (pouco) republicanos do Planalto Central e, provável e infelizmente, também na (pseudo) academia.

Em Franca/SP, cidade onde moro e de onde escrevo, temos um importante parque industrial calçadista. Para além das fábricas que entregam sapatos e sandálias, desenvolveu-se aqui, também, a indústria de componentes para calçados (produtos químicos para tratar o couro, beneficiamento de couro, solados de borracha, fivelas, cadarços), embalagens, transportadoras e agora, com o crescimento do comércio online, novas agências de correios e postos de coleta do Mercado Livre. Para produzir sapatos, não basta produzir sapatos. Mais que criar consumidores que queiram ou precisem daqueles sapatos, é preciso criar uma cadeia produtiva diversificada, que vai das matérias-primas brutas ao consumidor. Vejo por trás de tudo isso necessidades gerando oportunidades.

No Brasil de 40 anos atrás, as necessidades de saúde não atendidas de um povo em transição demográfica e epidemiológica deflagraram o movimento da Reforma Sanitária, bem sucedido na criação de um novo Sistema de Saúde, o SUS, nascido em 1988 na nova Constituição Federal. O SUS nasceu contemporâneo a um paradigma emergente que já se materializava em altas rodas de cientistas mundo afora, nasceu complexo, pós-moderno, profundo. Tão necessário quanto avançado para uma boa parcela dos brasileiros, a ponto de não ser inteiramente compreendido até hoje. Entretanto, 10 anos de implantação do SUS foram suficientes para escancarar a necessidade de formar sua força de trabalho, e foi assim que em 2001 surgem no Ministério da Educação, num belo esforço intersetorial com o Ministério da Saúde, as novas Diretrizes Curriculares para Graduação em Medicina, atualizadas em 2014 e já em discussão para nova atualização. Era preciso formar médicos para o SUS. Era preciso formar médicos competentes para lidar com as necessidades em saúde da população brasileira. 

O mundo expande e contrai, nossas experiências alternam-se entre boas e ruins, dando a impressão que a vida da gente vai e vem, mas o tempo sempre vai, inexorável rumo ao futuro. A despeito disso, pessoas teimam em não surfar nas ondas do tempo, e é assim que em 2021 temos 30 anos de implantação do SUS sem alcançar plenamente os ideais da Reforma Sanitária Brasileira. 

Magnólia formou-se médica em 2011, em São Paulo. O título de Gineco-obstetra veio em 2019, depois de trabalhar como médica, tornar-se docente, mestre e só então ingressar na residência médica. Agora especialista, conseguiu um bom emprego no Mato Grosso, e lá foram ela e sua família, pra mais uma mudança de endereço. O que melhor caracteriza Magnólia é sua visão sistêmica de mundo, sua criatividade e seu amor e comprometimento pelo trabalho. Ter Magnólia na equipe é um sonho já vivenciado por todos os colegas de quem ela foi se despedindo ao longo da carreira, sempre em busca de uma vida melhor, aliada ao desenvolvimento do seu genuíno e imenso potencial. E hoje? Além dos esperados pré-natal e partos, ela lida com sua percepção de tantos e tantos projetos de cuidado e melhoria da gestão que podem ser empreendidos no município onde atua, e as constantes podas, cobranças e ameaças de uma gestão bem intencionada, mas imediatista e sem visão de futuro, que quer controlar seus passos e limitar sua autonomia e criatividade. Em meio a frustrações e pequenas conquistas, Magnólia está ainda indignada, mas construindo seu espaço e começando a receber reconhecimento por seu trabalho. 

Margarida formou-se médica em 2015. Seria dermatologista, sempre soube e assim direcionou sua vida acadêmica, numa Federal em Minas Gerais. Quis o destino (será?) que entre a emissão do CRM e a prova para a Residência Médica em Dermatologia viesse um bico na Unidade de Saúde da Família da cidadezinha do interior de São Paulo onde sua avó morava. Quis o destino (será?) que Margarida se apaixonasse perdidamente pela riqueza e complexidade da Atenção Primária à Saúde e substituísse o projeto de ser Dermatologista pelo projeto de ser Médica de Família e Comunidade. Em três anos de atuação profissional, a possibilidade da interiorização da formação de médicos de família a levou para um curso para preceptoria no SUS, que a levou para a docência e daí para o mestrado. Paixões, paixões, paixões. Margarida é dessas que tem fé e que precisa estar apaixonada pelo que faz. Foram a paixão recém descoberta pela educação médica e a fé que lhe deram suporte para não cair quando seu mundo ruiu, quando teve que abdicar de sua maior paixão - a clínica na cidadezinha da sua avó - por perseguição política. Não, Margarida não queria ser prefeita! Ela só queria continuar sendo a melhor médica que a população daquela cidade já havia visto. A academia e a rede suplementar acolheram Margarida. Hoje ela compartilha do seu brilhantismo com colegas docentes e discentes encantados com sua competência e comprometimento com a medicina e com seus pacientes, mas ela não se vê mais a mesma, percebe-se ultra objetiva na docência, resultado dos seus plantões exaustivos na porta de entrada para casos suspeitos de covid no hospital da rede suplementar onde também trabalha. Margarida está cansada. 

Rosa formou-se médica em 2020. Em busca do seu sonho, mudou-se do Piauí para estudar no Rio Grande do Sul. Seria médica de família e comunidade. Envolveu-se em muitos projetos, disseminou a semente da medicina rural para todos os congressos, todos os cantos, ganhou até prêmio na Índia. Sem descuidar do ensino, envolveu-se em pesquisa e em extensão como muitos colegas de sua geração, sempre com um sorriso no rosto e cheia de esperança no coração. Quase no fim do curso, o casamento a levou para Goiás, para o centro do país. Do Norte, ao Sul, ao Centro-Oeste, Rosa foi espalhando sua alegria e construindo seu sonho de ser médica de família da área rural e a melhor companheira que seu marido jamais sonhou. Teve tempo para ser laureada pela universidade que lhe acolheu no 5o ano do curso, como a melhor dentre os melhores. Formou-se em meio à pandemia e quis o destino (será?) que antes da Residência ela conhecesse uma certa equipe de saúde da família, num certo território. Paixão! Paixão, paixão, paixão! Como abrir mão daquele trabalho tão incrível pra ir pra Residência Médica? Guardou aquelas fichas todas apostadas na Residência em MFC e foi ser feliz no primeiro trabalho como médica generalista atuando numa equipe de Saúde da Família. Só que… como ela mesma disse, "não basta querer fazer um bom trabalho, ter uma boa equipe e ter força de vontade... Tem um sistema no meio do caminho, no meio do caminho tem um sistema". Bastou um telefonema no meio do dia para o sonho virar pesadelo, para a menina esperançosa virar uma médica frustrada, decepcionada, machucada. Um caso agudo de desesperança, que se diga, porque Rosa não é do tipo de deixar a desesperança cronificar. Chorada a crise, o também forte lado acadêmico achou uma brechinha e a colocou num mestrado. Perde o sistema, quando perde uma rosa como a Rosa. É apenas o primeiro ano de uma vida profissional que, onde quer que se desenrole, formará jardins multicoloridos de muitas espécies. Rosa está de novo esperançosa, mas ainda (e já, tão cedo!) machucada.      

Açucena é uma alegre carioca que formou-se médica no interior do estado de São Paulo, em janeiro de 2021. Faceira, empática, cheia de boa vontade, logo no início do curso se apaixonou pela Medicina de Família - especialidade que nunca tinha ouvido falar - e resolveu que seria Médica de Família. Ao longo da graduação, cavou estágios no Amazonas e na cidade do Rio de Janeiro, levou sua família para passar férias em Florianópolis só pra conhecer a rede de saúde de lá, e estava sempre pensando pra qual programa de Residência em MFC se candidataria. Quis a vida que problemas familiares gravíssimos no fim do 6o ano alterassem o curso da sua vida e a Residência tenha sido deixada de lado - temporariamente. CRM na mão, encarou os plantões nos hospitais da sua cidade, mas a falta de vínculo com a equipe e com os usuários não a fazia feliz. Apesar da tristeza com que lidava com as perdas familiares e de seus projetos imediatos, a contratação para atuar numa equipe de saúde da família a encheu de alegria. Vínculo, equipe acolhedora, visitas domiciliares, alta possibilidade de resolução de problemas, era tudo que ela queria para sua vida profissional. Mas também no caminho de Açucena havia um sistema, um sistema incapaz de perceber o que ela podia oferecer, exigindo-lhe uma mediocridade que ela era incapaz de dar. Decepção, manifestada como aversão aguda ao vínculo, fez com que Açucena, em menos de dois meses de atuação profissional, engrossasse as estatísticas da alta mobilidade de médicos na Atenção Básica, cedendo novamente aos plantões hospitalares. Açucena sente-se perdida. 

Ao revolucionar o setor saúde com um novo Sistema, fomos chamados a revolucionar a formação de sua força de trabalho, mormente, os médicos. E, a considerar pelas histórias das nossas flores, acima, a academia têm tido sucesso, entregando à sociedade médicos cada vez mais bem formados, comprometidos com as necessidades de saúde da população brasileira e do seu sistema de saúde único, universal, equitativo, integral e descentralizado. Mas a história das nossas flores nos mostra que é preciso preparar o parque que dará sustentação à atividade profissional desses médicos. Para que formar bons médicos para o SUS se os nossos políticos não estão preparados para bons médicos? Recentemente, um orientado defendeu seu estudo de mestrado que mostrou políticos e burocratas (gestores municipais de saúde) que não sabem o que são políticas públicas, que não têm conhecimentos atuais sobre gestão pública, que pouco conhecem sobre a organização do SUS - como o papel da Atenção Básica de ordenadora da rede de atenção à saúde. Esses gestores estão colocando a perder todo o trabalho para formação de médicos generalistas, humanistas, críticos e reflexivos, como determina a política pública brasileira? Vamos continuar formando médicos para se frustrarem? Quais oportunidades se apresentam agora para a academia, na formação dos profissionais de saúde? Especificamente, na formação dos médicos? Na formação dos políticos? Na formação dos cidadãos, eleitores e usuários do sistema de saúde? Qual o meu papel nisso, como docente? Qual o papel do profissional de saúde? 

Ocorre que há forças ocultas que nos governam. Não estou falando de ET's nem de teorias conspiratórias, estou falando de paradigmas. Sim, paradigmas, no sentido de princípios supralógicos de organização do pensamento, pressupostos implícitos que configuram a visão de mundo que todo mundo tem (pegando emprestado definições de Edgar Morin e Marcelo Pakman). Os tais óculos, ou lentes, com as quais vemos e interpretamos os fenômenos do nosso cotidiano e que determinam as nossas ações.

O Imperador Adriano, na ficção Memórias de Adriano, escrita por Marguerite Yourcenar, disse que os costumes mudam mais rapidamente que as leis. No nosso caso, as leis mudaram, mas os costumes, não. Estamos no Século XXI, sofrendo as agruras de ações baseadas no paradigma ainda dominante no Século XX. E isso faz parecer que a Lei não é boa, que o SUS não é bom, que as Diretrizes Curriculares de Graduação em Medicina não são boas. Hoje precisamos de políticos, burocratas, cidadãos, médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde e de gestão alinhados com nosso tempo e com essas políticas públicas que nasceram na vanguarda e ainda têm muito a nos entregar. 

Penso que, para evitar que matemos o mensageiro por não gostarmos da mensagem, precisamos filosofar. Precisamos decidir qual paradigma nos governa o pensamento. Mais que entender, urge que ultrapassemos a barreira paradigmática e finquemos os dois pés na complexidade da profundidade da contemporaneidade (um singelo paralelo com a expressão usada anteriormente no texto; não pretendo aqui cunhar uma nova expressão, porque não tenho a profundidade teórica necessária para isso). Sei que não se ultrapassa paradigma com experiências racionais, cognitivas. Isso exige vivências que as metodologias ativas de ensino-aprendizagem podem ajudar a fornecer. Mas penso que ao menos ter consciência de que esse estado oculto de pressupostos nos governam pode ajudar, dar uma forcinha, quem sabe, na construção do sistema de saúde idealizado na Reforma Sanitária: resolutivo, equitativo e saudável para pacientes e médicos. 

Se você quiser saber mais sobre isso, leia a resenha que fiz do livro Pensamento Sistêmico, o novo paradigma da ciência, de Maria José Esteves e o artigo Alvorecer no Paradigma Sistêmico na Educação Médica, em que discuto a educação médica atual à luz do livro já citado.

Delimitei esta reflexão à experiência frustrante de bons médicos no subsistema público de saúde no Brasil, mas sei que tal situação não se restringe nem ao subsistema público, nem ao Brasil, como se pode ver neste outro artigo publicado na Academia Médica.

Em Franca/SP o sol já se pôs. A reflexão é longa e cheia de desencantos, mas é necessária. Assim que lanço este monólogo à possibilidade do diálogo dizendo que um dia formuladores de políticas públicas se perguntaram "que médicos estamos formando para o sistema de saúde que queremos?"  Agora é hora de perguntarmos "que sistema de saúde estamos oferecendo aos médicos que formamos?"


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