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Saúde mental é pré-requisito

Saúde mental é pré-requisito
Ana Carolina Leal Roorda
abr. 18 - 8 min de leitura
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Durante uma conversa com o preceptor J. e a psiquiatra do NASF R., acabei sendo colocada em pauta com a pergunta (bastante comum, principalmente quando componente de um bate-papo entre profissionais e acadêmicos da área da saúde que pouco se conhecem):

“Mas e você, Ana, que residência você pensa em fazer? Ou não sabe ainda?”

É sempre uma resposta complicada de dar. Parece uma questão pontual, que pode ser respondida com poucas palavras - “cirurgia” ou “estou entre cardio e endócrino” ou ainda “não sei, mas sei que vou fazer clínica!” - mas eu não sou capaz.

Não sou capaz porque eu migro de áreas de interesse de forma frequente, meio nômade de preferências. Para simplificar minha vida, eu dizia estar entre geriatria e psiquiatria (e a cada dia chega mais à ponta da língua a alternativa de MFC). Devido à experiência não tão reveladora durante meu tempo no CAPS, acabei por optar responder “penso em geriatria, mas não sei ainda”. 

Mas, por algum motivo, R. sabia que eu tinha interesse na área da saúde mental, que se traduziu no curso de medicina como psiquiatria. “Pensei que queria ser psiquiatra! Bom, de qualquer forma é muito importante ter gente na clínica com interesse em psiquiatria”. De fato, é muito importante. 

O conceito ampliado de saúde nos permite dizer que ser saudável é estar em estado de completo bem-estar físico, mental e social: basicamente, ser fisiologicamente estável e feliz. E nós, como (futuros) profissionais da área temos que buscar ajudar nosso paciente a atingir esse nirvana que a OMS chama de saúde.

É óbvio que é impossível separar, na prática, a parcela biológica da psíquica da social de uma mesma pessoa, mas por motivos didáticos (para que eu possa mais facilmente explicar o meu ponto), vamos forçar essa barra.

Cada uma delas tem importância vital, e têm uma relação de interdependência nítida. Mas me parece que a saúde mental, especificamente, é pré-requisito para atingir todas as outras esferas da saúde. Afeta ou potencializa diretamente o corpo e a inserção de uma pessoa no mundo. 

Começando pelo pensamento mais facilmente traçável - que foi, inclusive, um dos motivos pelo qual se lutou tanto pela reforma psiquiátrica: o declínio da saúde mental é altamente incapacitante, socialmente falando. Muitas das doenças psiquiátricas cursam com isolamento social, com perda de funcionalidade ocupacional, com relacionamentos destruídos. É, inclusive, critério diagnóstico se não de todas, de muitas delas, justamente essa limitação no funcionamento de quem as porta.

Os CAPS como local de convivência entre os que têm tendências a progressivamente se isolarem em sua zona de conforto, cada vez mais restrita, são um avanço gigante para a recuperação do papel de um paciente na sociedade. A convivência, a troca, o acolhimento são, por si, terapêuticos. Criam um local seguro para que se dê os primeiros passos em direção à ressocialização, e ainda auxiliam e capacitam essas pessoas para que elas possam estabelecer uma fonte de renda, mesmo que não através de um emprego formal. 

Um exemplo que eu gosto de trazer é T., que carrega consigo o diagnóstico de esquizofrenia paranoide. Não transparece, nos primeiros contatos, que já apresentou um dia um quadro que pudesse ser caracterizado como tal. É hoje um homem de 54 anos que se sente confortável em estar em (quase) todos os ambientes; tem amigos e amores; tem prazeres. Não tem emprego devido a uma desorganização que ainda persiste, lá no fundo. Mas tem a saúde da OMS.

Só que nem sempre foi assim. A irmã conta que em períodos difíceis ele foi se fechando devido à constante desconfiança; foi se isolando, também, porque ninguém parecia entender muito bem o que ele queria dizer e porque o dizia. Fumava muito, bebia mais ainda. Era completamente descuidado, sedentário, sujo. Lembro de olhar para o T., sentado ao lado da irmã durante o relato, balançando a cabeça confirmando cada palavra, e, mesmo assim, me é difícil imaginá-lo dessa forma.

T. hoje faz exercício na academia carioca, escova os dentes após cada refeição, largou o cigarro. A bebida ainda não, mas também nem planeja: gosta de um bar, porque é onde ele joga conversa fora e conhece mulheres. É quem é hoje porque trata sua questão relacionada à saúde mental.

Mas a saúde mental é também pré-requisito para que se possa manter a saúde do corpo. Existem fatores biológicos que são alterados no curso de doenças psiquiátricas: hiperativação autonômica em transtornos de ansiedade, aumento do risco cardiovascular relacionado à depressão, todas as consequências da inanição na anorexia nervosa, fora ainda o risco de autoagressão e suicídio. Enfim, são muitos. Mas, além deles, a ausência de saúde mental dificulta o autocuidado.

Dificulta o despertar de uma preocupação de alguém com o seu próprio corpo. Favorece hábitos lesivos, como tabagismo, sedentarismo e uso abusivo de álcool e outras drogas. Por vezes cursa com autodepreciação, sentimento de “eu não mereço”, negligência. E quem não se cuida minimamente é bomba-relógio. Vai estourar.

Trago exemplo agora de E., uma senhora de 60 e tantos anos, obesa grau 3, portadora de HAS em tratamento irregular e DM tipo 2 insulino-dependente completamente (completamente!) descompensada. Ah, e TAG grave. Parece que vive no automático, não retém nenhuma informação. Sua energia mental parece estar toda direcionada aos pensamentos remoídos, receio de cenários desfavoráveis, medo de avaliação negativa. Por isso não sai de casa: “e eu vou sair de casa para quê? Para que os vizinhos possam ficar comentando o que eu faço? Eu não!”. Isso lhe parece uma justificativa razoável para ter perdido contato com quase todos os membros de sua família, seus amigos, seu trabalho. 

Pois bem, voltando ao componente biológico de E. Não faz uso correto dos remédios da hipertensão porque tem dificuldade de lembrar de tomá-los. Como já havia dito, tem atenção e concentração muito diminuídas, que vêm sob a forma de queixa de “esquecimento”. Não lembra se já tomou o remédio, então, para não correr o risco de tomar duas vezes, acaba por não tomar. E fica nessa. Quantifica-se a má adesão pelo tempo de duração da medicação que deveria durar por apenas 1 mês. E quanto à diabetes, o buraco é ainda mais embaixo.

Além do basal “será que já tomei o remédio hoje?”, existe ainda outra dificuldade de cumprir o tratamento que lhe foi proposto. Toma a metformina nessa irregularidade, e ainda usa a insulina como SOS para quando a glicemia vai para acima de 300 (limiar estabelecido por conta própria), mesmo que lhe tenha sido prescrito uso diário, rotineiro. Faz isso porque tem medo de passar mal, porque soube da história do filho de um vizinho que teve hipoglicemia sintomática depois de aplicar dose muito alta de insulina.

E fica desfilando por aí com glicemia acima de 300 apenas porque nunca conheceu alguém que passou mal por conta de excesso de glicose ou falta de insulina. Além de tudo, sofre de transtorno de compulsão alimentar, com alta frequência de episódios. A mim é até risível imaginar o cenário de um médico falando para uma paciente com compulsão alimentar que ela tem que maneirar nos doces. Então E. torna-se cada vez mais obesa, cada vez mais hipertensa, cada vez mais diabética porque é ansiosa. E sem expectativa de cumprir as intervenções terapêuticas que lhe foram apresentadas e reforçadas enquanto não houver resolução do quadro psiquiátrico.

De fato é importante existirem clínicos com interesse em psiquiatria. Com interesse em abordar a saúde mental. Porque ela está aí, muitas vezes impossibilitando o tratamento da doença orgânica, perpetuando-a no paciente, frustrando os médicos. Saúde mental é pré-requisito para saúde num geral.


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