George Orwell no seu clássico “1984” descreve uma sociedade distópica em que toda a população é constantemente monitorada e governada por uma persona: o Big Brother. Atualmente, no contexto médico, surge uma preocupação justa, mas equivocada das consequências da popularização da telemedicina, mais especificamente a tele-UTI, e um possível futuro Orwelliano. É completamente compreensível que novas tecnologias venham acompanhadas de medo ou resistência o que torna ainda mais necessário esclarecer alguns conceitos e pontuar precisamente os desafios dessa ferramenta.
Primeiramente, é preciso definir o que é a telemedicina e a tele-UTI. A telemedicina é caracterizada como uma vertente da inovação médica que busca integrar as novas tecnológias de comunicação e armazenamento de informação para proporcionar a assistência médica a distância (1). A tele-UTI, portanto, é definida como a telemedicina voltada para o atendimento em unidades de terapia intensiva. Essa definição, entretanto, ainda é muito branda e não caracteriza especificamente como essa tecnologia é aplicada atualmente.
O sistema em vigência, na maioria das instituições hoje, se caracteriza por uma rede central de comunicação na qual enfermeiros e médicos intensivistas monitoram inúmeros pacientes de múltiplas UTIs (cerca de quarenta pacientes por profissional de saúde). O centro integrador dessa rede tem acesso a monitores audio-visuais de mão dupla em alta definição que ficam nas salas de atendimento intensivo além dos exames laboratoriais, sinais vitais e o número de contato dos médicos presentes naquela unidade de saúde.
Surge, a partir disso, uma certa resistência e questionamentos éticos válidos relacionados principalmente a privacidade do paciente e a hierarquia de tomada de decisão no hospital. Todavia, é necessário exploráramos melhor a forma de aplicação desse sistema para entender que não é bem assim. O sistema audio-visual de tele-UTI não monitora o paciente 24 horas por dia, sete dias na semana, o médico intensivista só irá acessar a câmera quando for requisitado pelo paciente ou pelo profissional de saúde atendente. Além disso, em algumas instituições quando a câmera é ligada para visualizar o paciente ela é precedida por um sinal de áudio que avisa ao paciente que alguém está o vendo e o profissional do outro lado da tela também aparece. O sistema audio-visual funciona em mão-dupla.
Outro equívoco em relação ao tele-UTI é que esse sistema irá substituir ou reduzir o número de profissionais de saúde atuantes naquela sala. Essa não é a proposta da tele-UTI. O que ela realmente providencia é uma camada adicional de monitoramento e auxílio para os profissionais vigentes naquele local. A instituição Albert Einstein atualmente possui um programa de tele-UTI em que outros hospitais podem se integrar ao seu sistema e ter acesso a sua equipe de médicos intensivistas especializados para auxiliar na tomada de decisões caso os profissionais locais requisitem. Ademais, por meio do monitoramento laboratorial e dos sinais vitais os pacientes ganham uma nova gama de profissionais qualificados que estão atentos a mudanças no quadro clínico que o médico local pode vir a deixar passar.
Os estudos que buscam avaliar a eficiência da implementação do sistema de tele-UTI, entretanto, possuem resultados divergentes. Thomas et al (2009) afirma que o monitoramento por meio da tele-UTI não resulta em redução nas taxas de mortalidade ou no tempo de permanência hospitalar (2), enquanto que Lilly, et al (2011) alega o exato oposto (3). Há ainda estudos que relatam uma redução no burnout e no estresse pós-traumático dos profissionais locais além de uma resposta positiva dos residentes e jovens médicos que utilizam dessa ferramenta para o aprendizado (3). Outra questão que também merece ser abordada é o custo que ainda é muito elevado podendo chegar até $2.5 milhões de dólares para a instalação e um custo anual de $600 mil a $2 milhões para manutenção (4). Por outro lado, esse cálculo não leva em consideração o potencial da tele-UTI na redução da despesa do hospital pela redução do tempo de estadia dos pacientes que pode alcançar $2.5 milhões de dólares(4).
As divergências nos resultados dos estudos podem ser devidos ao fato do termo tele-UTI ser, por definição, muito vago e inespecífico: ele não descreve exatamente como as tecnologias de telecomunicação serão implementas. Acredito que, diante disso, é necessário analisarmos caso a caso os locais aonde já é aplicada essa tecnologia e identificar precisamente o que funciona e o que não funciona ao invés de generalizar.
O fato é: a tecnologia existe e ela não vai a lugar algum, agora cabe a nós nos tornarmos conscientes do seu potencial tanto positivo quanto negativo e implementá-la de acordo.
A inovação tecnológica é uma espada de duas pontas e deve ser tratada com a seriedade e atenção que merece. Acredito que se mantivermos isso em mente ao invés de termos um Big Brother dentro da UTI daremos um par de olhos adicionais ao nosso anjo da guarda.
Esses e outros assuntos você encontra e compartilha na Academia Médica. Envolva-se com a comunidade. Temos muito a aprender, refletir e compartilhar com você!
Esperamos vocês no Academia Médica Week: Telemedicina
Referências
1. J. Yoo E, Dudley A. Evaluating Telemedicine in the ICU [Internet]. Jama Network. 2009 [cited 28 September 2020]. Available from: https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/185100
2 - Thomas EJ, Lucke JF, Wueste L, Weavind L, Patel B. Association of telemedicine for remote monitoring of intensive care patients with mortality. complications and length of stay. . JAMA. 2009;302(24):2671–8
3 - Lilly CM, Cody S, Zhao H, et al. Hospital mortality. length of stay and preventable complications among crtically ill patients before and after tele-ICU reengineering of critical care processes. . JAMA. 2011;305(21):2175–83.
4 - Breslow MJ, Rosenfeld BA, Doerfler M, et al. Effect of a multiple-site intensive care unit telemedicine program on clinical and economic outcomes: An alternative paradigm for intesivist staffing. Crit Care Med. 2004;32(1):31–8.