Recentemente, um julgamento histórico defendeu a liberdade religiosa e isentou dos pais a culpa pela morte da filha, ao recusarem a transfusão sanguínea, que poderia salvar a vida da adolescente de 13 anos com anemia falciforme.*
Entenda o caso:
Julho de 1993, os pais de Juliana Bonfim da Silva, levaram-na ao Hospital São José, em São Vicente, litoral paulista. A menina estava passando por uma crise aguda de oclusão, provocada pela doença anemia falciforme. Os médicos explicaram aos pais a gravidade do quadro e a necessidade da transfusão sanguínea imediata, mas os pais (Testemunhas de Jeová) foram irredutíveis e não aceitaram a transfusão. Respeitando a autonomia e decisão dos representantes legais da menina (de apenas 13 anos), os médicos não realizaram a transfusão sanguínea e dois dias depois, Juliana morreu. Quatro anos depois, os pais foram denunciados pelo Ministério Público, por homicídio doloso (quando há intenção de matar), acusados de serem culpados pela morte da filha, ao não permitirem a transfusão. O processo se estendeu até 2010, quando então o Tribunal de Justiça de São Paulo, decide mandar o caso a júri popular. Em agosto de 2014, o casal é inocentado.
O STJ entendeu que nesse caso, a culpa pela morte da menina foi exclusivamente dos médicos que não realizaram a transfusão, respeitando a vontade dos pais, apesar do iminente risco de morte.
Essa polêmica decisão, levanta a seguinte questão: o que se deve fazer nesses casos?
Em risco iminente de morte, devemos fazer a transfusão, mesmo contra a vontade do paciente ou da família? Mas, e a autonomia do paciente?
De acordo com o Código de Ética Médica: Nós podemos fazer a transfusão:
"É vedado ao médico:
'Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
'Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”.
Ou seja, quando há risco iminente de morte, assim como no caso de Juliana, o médico pode fazer a transfusão, mesmo contra a vontade do paciente ou da família. Nesse caso, o STJ justificou sua decisão (de inocentar o casal) com a justificativa de que os médicos têm o compromisso com a vida, ou seja, se a paciente estava em risco iminente de morte, para o STJ, era dever dos médicos fazer a transfusão para salvar a vida da paciente, mesmo contra a vontade da própria ou da família.
Mas já que dentro desse conceito "vida" implica não só a saúde do corpo, ou seja, não só a parte biológica, mas também a psicológica, espiritual e social, como ficaria então essas outras questões no conceito vida, para o paciente Testemunha de Jeová que sofreu a transfusão?
Para entender mais sobre essa questão, conversamos com o médico ginecologista e membro dessa religião, Dr. Elbens Azevedo:
AM: Gostaria de entender o porquê da recusa à transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová?
"Por causa da Bíblia.
Foram pastores das Igrejas Adventistas, Batistas, Presbiterianas e Igreja Congregacional que formaram um grupo em 1875 chamado Estudantes Internacionais da Bíblia, eles se reuniam e estavam estudando apenas a Bíblia, e começaram a perceber que as religiões que eles frequentavam, que eles eram líderes, a religião em si ensinava coisas diferentes do que a Bíblia estava dizendo, então eles decidiram sair da religião deles e formaram esse grupo numa cidade nos EUA, na região da Pensylvania (Pittsburgh). Enquanto estudavam cabalmente a Bíblia, eles encontraram esse texto: Isaías - 43, 10: 'Vós sois as minhas Testemunhas, assim diz o Senhor, e meu servo, a quem escolhi; para que o saibais, e me creiais, e entendais que eu sou o mesmo, e que antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá'. E então, num Congresso desses Estudantes Internacionais da Bíblia, eles tomaram esse nome, em inglês: Jehovah's Witnesses (JW).
Em Gênesis 9, 3-6 é a primeira vez que se fala algo sobre o sangue: 'Todo animal movente, que está vivo, pode servir-vos de alimento, como no caso da vegetação verde(...). Porém, somente a carne com a sua alma, seu sangue, não deveis comer. Certamente requererei o vosso sangue, o sangue das vossas vidas; da mão de todo o animal o requererei; como também da mão do homem, e da mão do irmão de cada um requererei a vida do homem. Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem'.
Existem outras passagens também como Levítico que são ainda do Antigo Testamento, mas também no Novo Testamento, em Atos dos Apóstolos (o livro escrito por Lucas, apóstolo médico, nosso patrono) Atos 15, 28-29: 'Pois, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós mesmos, não vos acrescentar nenhum fardo adicional, exceto as seguintes coisas necessárias: ‘Que persistirdes em abster-vos de coisas sacrificadas a ídolos, e sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação. Se vos guardardes cuidadosamente dessas coisas, prosperareis, e ainda tereis boa saúde.'
Naquela época se fazia transfusão de sangue? Não. A primeira transfusão bem sucedida é de 1818, com Blundell. O que significa então abster? Você fala pra um paciente: ‘O sr. deve se abster de álcool’. Então ele entende que não pode beber álcool, mas injetar na veia pode? Não, deve se abster.
Ou, cafeína, por exemplo, você fala para o paciente: ‘Você não pode beber cafeína’, mas se injetar cafeína, tudo bem? Não, porque deve se abster.
Então veja: naquela época, há 2000 anos atrás, quando foi escrito isso, eles usavam o sangue para beber. O sangue dos gladiadores, por exemplo, era muito disputado eles acreditavam que existia uma energia especial, que iriam poder adquirir a força do lutador bebendo o sangue dele; acreditavam também que podiam curar epilepsia, ou outras doenças psiquiátricas com o sangue, é o “achismo”. Agora, a medicina é uma arte, de verdades transitórias, o que no passado era uma grande bobagem, hoje é uma coisa seríssima, por exemplo, lavar as mãos. Até o começo do século 19, quantas mulheres morriam de infecção puerperal, porque os médicos não lavavam as mãos, eles saiam das necropsias, e iam fazer os partos, sem lavar as mãos. Hoje, você consegue entrar num centro cirúrgico sem lavar a mão?
Então, tudo muda muito. Por exemplo, até o começo do século XX o padrão era tirar sangue. Depois, principalmente a partir de 1940, quando se começou a entender mais sobre os grupos sanguíneos, cresceu também muito a transfusão, o que salvou muitas vidas, sem entrar nessa questão da bíblia, é claro. Os Estudantes da Bíblia, viram esses textos também, e queriam fazer de coração a vontade de Deus, se a Bíblia é um testamento que o nosso Pai, Criador, deixou para nós, eles queriam seguir da forma como foi escrito, e não interpretar. Agora, obedece quem quer, ninguém é obrigado a obedecer. Como as Testemunhas de Jeová querem fazer exatamente como a Bíblia diz, ou seja, fazer exatamente a vontade de Deus, então esse é o motivo principal pelo qual as Testemunhas de Jeová não fazem uso do sangue, porque está aqui: na Bíblia. Não é uma lei que tem na religião.”
AM: Como se sentiria um paciente Testemunha de Jeová que passou por uma transfusão de sangue contra a sua vontade?
"Você conhece alguém que já foi estuprado? É assim que se sentiria, a pessoa se sente suja, violentada. E a família vai tentar cuidar, proteger, oferecer o máximo de suporte emocional possível."
Muitas vezes na medicina, o médico por ser o detentor desse conhecimento (obviamente, porque foi ele quem estudou medicina por 6 anos, depois mais alguns de residência, etc.) se sente como sendo a única pessoa capaz de tomar a decisão a respeito do tratamento para o seu paciente, ou seja, como se ele realmente soubesse o que é melhor para o paciente.
De fato, se formos pensar do ponto de vista da ciência, da medicina, se chega, por exemplo, um paciente chocado, vítima de trauma grave, que vai precisar ir para o centro cirúrgico e vai precisar ser transfundido para sobreviver, parece-nos óbvio que, independentemente de ele querer ou não, a nossa obrigação como médicos seria salvar a vida dele. Porque ao nos formarmos médicos, nós fazemos um juramento: (...) Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.
A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. (...)
Salvar a vida do paciente, a todo custo, nesse caso, seria o mais importante. Mas, como lidar com isso, sabendo que para essa pessoa uma transfusão seria como uma "morte em vida"? Ou seja, seria como tirar dele tudo o que ele tem de mais importante, pois para uma Testemunha de Jeová, a transfusão de sangue é um pecado, assim como outros pecados (como roubar, matar, etc.), a pessoa se sente impura, indigna, e algumas vezes se sente excluída da família e da comunidade.
Portanto, nesses casos, é preferível analisar e descobrir em que ponto "salvar a vida" do paciente com uma transfusão deixa de ser benefício e passa a ser prejudicial/danoso para o paciente.
Percebemos hoje, que aquela atitude paternalista de que o médico é o detentor do conhecimento e por isso deve ser o único responsável por tomar a decisão acerca do tratamento, está ficando ultrapassada.
A tendência atual, segundo a bioética, é a tomada de decisão seguindo um modelo deliberativo, ou seja, o médico delibera a tomada de decisão para o paciente. Dentro desse modelo se promove a livre expressão dos argumentos, o acolhimento de argumentações discordantes, para se chegar a uma decisão razoável e prudente.
Sendo assim, se formos pensar do ponto de vista do paciente, partindo do pressuposto de que a vida é dele, e não nossa, e de que não cabe a nós fazer julgamento de suas convicções ou crenças, apesar de termos respaldo do código de ética, o melhor a se fazer nesses casos (quando o paciente não deseja a transfusão), mesmo em risco iminente de morte, seria mesmo não fazer a transfusão. No Brasil, ainda não temos leis específicas que discorrem sobre esse assunto. Mas, em muitos países o que se observa é que não se faz.
É claro que existem casos e casos, seria impossível ter uma decisão pronta para todos, diante de um dilema ético tão grande. Sem dúvida, o bom senso deve prevalecer em cada decisão.
A verdade é que, durante a faculdade de medicina, nós somos treinados a salvar vidas, mas não somos ensinados ou somos pouco preparados para lidar com a frustração de perdê-la, ou de saber quando devemos parar. Talvez, porque isso seja mais uma daquelas coisas que nós aprendemos a "duras penas" com a experiência, apenas vivendo.
Comente logo abaixo! Leia também o texto "Manual Básico sobre hemotransfusão em Testemunhas de Jeová", publicado pela Advogada Renata Rothbarth
Fontes:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/08/1499255-medico-deve-fazer-transfusao-mesmo-sem-aprovacao-dos-pais-diz-justica.shtml
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/justica-decide-mandar-juri-popular-pais-que-impediram-transfusao.html
* Nota do editor: texto publicado originalmente em 12/11/2015.