... o ensino nas escolas médicas e a prestação do serviço em saúde.
A vida sob uma ótica ampla, independentemente de ser direito natural ou normativo, traduz-se em um aspecto absoluto de indisponibilidade. A existência do abstratismo existencial do indivíduo, como ser humano, decorre desse liame de racionalidade, tornando-o detentor dessa supremacia sobre as outras espécies, inclusive por suas características de adaptação e inventividade. Logo, indubitavelmente, o indivíduo é um dos elementos fundamentais para a pactuação e origem do Estado, tratando-se de uma ficção: uma inventividade humana. Nesse esteio, não há que se pensar em criação e organização estatal para outra consecução que não seja a de atendimento das necessidades coletivas.
A vida, hodierno, em muitos casos, se encontra em um processo de espoliação, mas ao reverso, jamais poderá ser expropriada. Para isso, exige-se uma intervenção massiva do Estado a produzir meios que caminhem no sentido oposto. Evitando adentrar em uma discussão metafísica, a vida é alçada aqui sob a ótica da bioética, que assim se pode inferir que a vida humana, a pessoa, se apresenta como uma unidade de espírito e corpo, sendo composta de elementos espirituais, intelectivos e morais, além dos meramente biológicos. O aspecto mais humano do homem está centrado exatamente na sua essência, que é a capacidade de se separar do determinismo do mundo e de estar na singularidade única por meio da consciência e da liberdade: o livre arbítrio.
Pois bem, a vida, sob o manto jurídico, não pode ser apresentada e observada isoladamente dentro desse sistema, mas analisada à luz dos princípios de interpretação constitucional, a considerar a existência de diversos direitos fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, o direito à integridade física e psíquica e a proibição de tratamento desumano ou degradante e o ponto principal instado aqui, o direito à saúde.
O direito à saúde sob o aspecto dialógico entre os pensamentos de Flexner[1] (1910) e Dawson[2] (1920), sendo acurados, propositalmente, em dois pontos distintos: a medicina preventiva e o ensino nas escolas de medicina.
No Brasil há cerca de 247 instituições públicas e privadas que oferecem anualmente em torno de 22 mil vagas nos bancos das escolas médicas. Apesar de se tratar de prestação de serviço público, o ensino superior, o curso de medicina, há um tratamento mercadológico por parte das organizações educacionais que disputam milimetricamente seus postulantes. Todavia, há um processo de irmandade das organizações no que concerne aos apontamentos e acertos nos valores das mensalidades, que variam de 6 a 12 mil reais. Essa faixa de renda não compreende nem 3% das famílias brasileiras. Consequentemente, o curso de medicina se tornou um grande filão para as organizações educacionais privadas, contribuindo assustadoramente para uma elitização educacional.
Em 1910, Abraham Flexner, realizou um estudo, no período de seis meses, após visita em 155 escolas de medicina dos EUA e do Canadá. A partir das avaliações que realizou, naquele mesmo ano, publicou o famoso relatório – denominado Relatório Flexner. Na ocasião em que ele iniciou suas avaliações nas escolas médicas nos EUA, evidenciou um ensino caótico, por isso a importância de entender o contexto da época. Não havia a exigência de concessão e controle estatal para o exercício da medicina, bem como ocorreu uma grande proliferação de escolas de medicina. Pasmem, as escolas médicas habilitavam, exclusivamente, seus currículos, independente de fundamentação teórico-científica. Assim, haviam uma pluralidade de abordagens terapêuticas, sem padronização, vinculadas ou não a núcleos universitários, com ou sem equipamentos producentes, com critérios de admissão e tempo de duração dos cursos diferenciados.
Esclarece-se ainda, que no final do século XIX um fato determinante produziu mudanças nas escolas médicas, apontando para a crescente indústria farmacêutica que passa a exercer forte pressão, através do grande capital, no governo e nas escolas médicas dos EUA, para implantação e extensão da medicina científica.
Nas avaliações de Flexner percebia-se que a maioria das escolas médicas dos EUA e do Canadá eram desnecessárias e/ou inadequadas. Das 155 escolas médicas avaliadas, apenas 31 tinham condições de continuar funcionando. Em uma dúzia de anos posteriores a publicação ao relatório Flexner, o número de escolas médicas nos EUA caiu de 131 para 81, muitas se converteram para o modelo biomédico. As escolas médicas se elitizaram e passaram a ser frequentadas pela classe média alta.
O Relatório de Flexner teve dois pontos contrapostos marcantes. O primeiro, de forma positiva, permitiu reorganizar e regulamentar o funcionamento das escolas médicas, padronizando os seus processos e currículos, permeando uma nova realidade sob a custódia científica. O segundo, de forma negativa, permitiu a assunção implícita da excelência na educação e formação de força de trabalho médico, tornando-a uma determinante para a valorização profissional no mercado de trabalho. Contudo, as necessidades de saúde são tomadas como o ponto de chegada e não como ponto de partida da educação médica.
Expõe-se, principalmente, essa pressão mercadológica das indústrias farmacêuticas, com fins de obtenção de lucros no trato com a doença. Instala-se definitivamente essa conexão com a medicina curativa. Contemporaneamente, é perceptível nas condições de investimentos (parque semiológico), carga horária e a propaganda indiscriminada que se faz da disciplina de semiologia. Insculpe-se e se caracteriza absolutamente esse tipo de medicina, voltado quase que de forma exclusiva para o estudo da doença. O médico passa a viver na confluência de um poder máximo de deliberação e passa a crer que é um “deus”, a partir da soberania na hierarquização profissional. Enclausura-se nos consultórios e nos leitos, adotando e inspirando o molde hospitalocêntrico. O indivíduo se torna irrelevante nesse processo, pois a doença é o único objeto do seu trabalho. Infelizmente, desconhece o território ou as determinantes que possibilitam aquele indivíduo adoecer. O profissional médico passa adotar uma postura de quase cegueira coletiva, absorvendo a pressão mercadológica das indústrias farmacêuticas.
Por outro lado, a medicina preventiva, de forma incipiente e silente, passa a caminhar na contramão daquilo que seria o fluxo de modelo exigível, com escopo a mudança dessa terrível realidade desmoralizante. O mercado funciona como um norteador e que direciona, mesmo com vieses, essas discrepâncias. Refunde e se instala a hegemonia nessa casta minoritária. Essa nova ordem nas escolas médicas passa a decorrer dessas forças de lucratividade e uma exercente fomentação de hierarquização social, que se promovem em detrimento ao direito formal à saúde do indivíduo. Os recursos são insuficientes e desviados, espoliando definitivamente um direito primordial a qualquer indivíduo, o que fragiliza o próprio direito à vida.
Em 1920, o Relatório Dawson, elaborado por uma equipe capitaneada por Lord Dawson, Ministério de Saúde do Reino Unido, foi considerado um dos primeiros documentos a utilizar o conceito de Atenção Primária à Saúde em uma perspectiva de organização sistêmica regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde, por nível de complexidade e sob uma base geográfica definida. As concepções desse documento influenciaram a criação do sistema nacional de saúde britânico em 1948, que por sua vez passou a orientar a reorganização dos sistemas de saúde em vários países do mundo. Destaca-se, também, que o relatório apresenta conceitos de território, populações adscritas, porta de entrada, vínculo e acolhimento, referência e atenção primária como coordenadora do cuidado.
Ao contrário, porém em uma nova concepção de medicina, que não finda ou afasta a medicina curativa, mas adensa-a a preventiva, consistindo em não separação e uma coordenação estreitada por princípios sólidos de esforços combinados e referenciados. Espera-se assim, um processo de fortalecimento no atendimento das demandas prescritas em territórios desprivilegiados de equipamentos públicos, esquecidas pelos poderes instituídos, coadunando na diminuição dessa lacuna que contribui para a iniquidade em saúde.
As críticas ao modelo hegemônico da educação médica devem ser finalmente consideradas, a fim de se firmar uma nova trajetória e conceber efetivamente o direito à saúde dos indivíduos menos abastados que vem sendo espoliada à galope desde a sua existência. Todo esse processo de mudança exige uma discussão com participação ampla, de acadêmicos, profissionais médicos, profissionais educadores, instituições representativas, a sociedade civil organizada e o poder público, a fim de garantir meios de transformação para inclinar as academias médicas a se voltar e estabelecer seu ensino para essas novas exigências sociais e consolidação dessa nova ordem multi-atitudinal. Espera-se ao final desse processo, a formação de médicos capacitados e que atendam a essas novas exigências, incorporando a amplitude do processo da saúde e da doença e seus determinantes, afastando-se do esteio das vaidades e a concepção da medicina, de cunho profissional, garantidora de prestígio e riqueza, com formação de uma casta dominadora.
[1] Flexner A. Medical Education in the United States and Canada. New York: Carnegie Foundation for The Advancement of Teaching, 1910.
[2] Dawson L. National Health Service. 1920.
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