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Violência obstétrica e direitos das pacientes à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Violência obstétrica e direitos das pacientes à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Maria Clara Malta
mar. 31 - 25 min de leitura
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A violência obstétrica é um problema que existe desde os primórdios da humanidade e, embora seja um tema atual, é preciso falar sobre o assunto, sem sensacionalismo — com maturidade e discernimento.


Este artigo está dividido por tópicos:

Violência obstétrica: o que é e como é praticada?

• O que diz a legislação contra violência obstétrica no Brasil?

• Classificações de violência;

• Legislação brasileira e prevenção da violência obstétrica;

• Violação dos direitos humanos x violência obstétrica;

• Caso Shantal Verdelho: um exemplo de violência obstétrica;

• Conclusão.


Os traumas gerados pela violência obstétrica podem ser físicos e psicológicos e esse tipo de violência pode ser cometido por qualquer profissional de saúde. Também considera-se como violência obstétrica o abuso de medicalização e da patologização dos processos naturais, que acarretam na perda de autonomia da paciente e na capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade de forma negativa

O parto é uma situação a qual se externaliza a manutenção da vida humana. Trata-se de um acontecimento histórico para a família (principalmente para a mulher e o bebê), que ocorre através de uma experiência humana, biológica e psicológica.

O parto pode ser considerado um episódio com dois integrantes: o primeiro deles é mulher, em seu momento único, sendo  protagonista de um ato o qual deve visar inicialmente e com prioridade sua autonomia e capacidade de decisão. De outro lado, a ciência, a medicina e a obstetrícia, que transformam tal momento em uma internação médico-hospitalar colocando a mãe na condição de paciente.

É nesse contexto e nos hospitais, que diariamente a violência obstétrica torna-se uma rotina muitas vezes já experimentada por grande parte das mulheres no Brasil. Esta violação pode ser materializada em momentos distintos da vida da mulher, desde  o pré- natal até o pós parto, no puerpério. A degradante situação citada acima, também pode vir a acontecer em casos mais extremos, como em abusos sexuais e mutilação genital feminina no momento da episiotomia. 

Violência obstétrica: o que é e como é praticada?

Definir a violência obstétrica é uma maneira de tentar proteger a mulher e, consequentemente, dar suporte ao profissional da saúde e oferecer infraestrutura aos hospitais. É muito importante que a gestante exerça sua liberdade de escolha e livre consentimento (de maneira clara e humanizada), para que não ocorra nenhum ato contrário às normas e disposições humanitárias durante o procedimento do parto, antes e após.

Leia também: Violência Obstétrica: como identificar e denunciar

Segundo a organização não governamental The Women’s Global Network for Reproductive Rights , violência obstétrica, em uma definição abrange é a:

 “Intersecção entre: violência institucional e violência contra a mulher durante a gravidez, parto e pós-parto. Ocorre nos serviços de saúde públicos e privados. Para muitas mulheres [como consequência da violência obstétrica] a gravidez é um período associado a sofrimento, humilhações, problemas de saúde e até a morte. A violência obstétrica pode se manifestar através de: negação de tratamento durante o parto, humilhações verbais, desconsideração das necessidades e dores da mulher, práticas invasivas, violência física, uso desnecessário de medicamentos, intervenções médicas forçadas e coagidas, detenção em instalações por falta de pagamento, desumanização ou tratamento rude. Também pode se manifestar através de discriminação baseada em raça, origem étnica ou econômica, idade, status de HIV, não conformidade de gênero, entre outros”.

O que diz a legislação contra violência obstétrica no Brasil?

Ainda não há  uma lei específica que trata da violência obstétrica no Brasil. O que temos são projetos de Leis de iniciativas estaduais, como a exemplo no estado de Alagoas. Na data de 06 de agosto de 2019 realizou-se a primeira audiência pública acerca do tema, e em 07 de agosto do mesmo ano, a prefeita de Rio Branco sancionou uma lei a qual vislumbra medidas de contenção da violência obstétrica. 

No Paraná, também já existe um projeto de lei a respeito do tema e inclusive um conceito já definido: "qualquer ação ou omissão que possa causar à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual e psicológico; a negligência na assistência em todo o período de gravidez e pós-parto; a realização de tratamentos excessivos ou inapropriados sem comprovação científica de sua eficácia; e a coação com a finalidade de inibir denúncias por descumprimento do que dispõe a lei”.

Em janeiro de 2017,  foi sancionada uma nova lei (Lei nº  17.097)  no estado de Santa Catarina que prevê a publicação de uma cartilha na qual consta informações sobre os direitos da gestante e parturiente. 

Além disso, os contornos da violência obstétrica foram desenhados: ofensas e agressões verbais ou físicas, intimidação, procedimentos forçados e cesariana desnecessária. Todos esses atos, vindos de familiares ou da equipe médica, agora serão considerados violências obstétricas.

No Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, do projeto “Nascer no Brasil”, coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública(ENSP/ Fiocruz), os pesquisadores chegaram  à conclusão que:

 “ A maioria das mulheres foram submetidas a intervenções excessivas, ficando restritas ao leito e sem estímulo para caminhar, muitas delas sem poder se alimentar durante o trabalho de parto, e o mais trágico: foram utilizados medicamentos para acelerar as contrações (ocitocina) sem a autorização das mesmas, foram submetidas à episiotomia (corte entre a vagina e o ânus) e deram à luz deitada de costas, muitas vezes com alguém apertando sua barriga (manobra de Kristeller) (NASCER NO BRASIL, 2012, p. 3)”.

Apesar de ainda não existir uma legislação específica sobre, encontramos na atualidade conteúdos e jurisprudências que trazem exemplos relacionados à violência contra mulher. Por isso, um ponto importante para identificar a violência obstétrica é  definir qual foi o tipo de direito violado e qual a violência cometida. Abaixo 5 tipos de violência!

1.Violência por negligência

Ato de negar atendimento ou dificultar o acesso à um atendimento completo e humanizado para a gestante. Tal violência gera um problema em cadeia, já que, a gestante começa a migrar de profissional em profissional, posto em posto, e por fim de leito em leito no momento do parto. 

Outra modalidade de negligência obstétrica pode ser no sentido de que a mulher, conforme a lei, tem direito de estar acompanhada de um familiar ou amigo próximo durante essas consultas e principalmente no momento do parto, quando esse direito lhe é negado, resta configurada a violência obstétrica.

2. Violência física

Caracteriza-se por  condutas e ingerências dispensáveis e violentas, principalmente quando feitas sem que a mulher autorize. São exemplos:

  • Indução do parto com aplicação de ocitocina;

  • Lavagem estomacal, exame de toques em excesso;

  • Manobras Kristeller;

  • Imposição de postura de parto que não a escolhida pela mulher;

  • Episiotomia sem autorização da mulher entre inúmeras outras banidas pela OMS.

Por fim, até mesmo a própria cesárea pode vir a ser considerada como um ato de violência obstétrica quando essa é realizada forçada, ou seja, sem que a mulher tenha consentido ou sem prescrição médica. Segundo a  Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil está no ranking dos países que mais fazem cesárea no mundo, liderando o 2º lugar, o percentual aumenta gradativamente na rede privada de saúde, onde corresponde a 85,5% dos partos realizados.

3. Violência verbal

É caracterizada pelo ato de ridicularizar a mulher  através de comentários ofensivos e humilhantes.  São considerados comentários que ferem a mulher e suas escolhas, seja por meio de ataques à vida pessoal, escolhas de vias de parto, estado civil, religião e quaisquer tipos de conversas  que firam internamente seu psicológico.

4. Violência psicológica

Qualquer tipo de ação que coloque a mulher  mulher em situações de instabilidade emocional é considerada violência psicológica. A violência psicológica pode ser causada por: pressão psicológica, xingamentos durante o expulsivo, ações verbais que causem insegurança e humilhação, entre outras atitudes.

Quando falamos de direitos das mulheres, é claro a falta de uma lei específica que venha a elencar todos os tipos de violências que possam vir a ser sofridas pelas mulheres. Mais ainda, a escassez de leis que garantam e protejam seus direitos como gestante e parturiente. 

A lei que mais se aproxima neste caso, é uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dispõe acerca da autonomia da mulher na hora de decidir qual será sua via de parto. Trata-se de uma espécie de exercício da autonomia da vontade da gestante e que também garante o exercício de seus direitos fundamentais, tais como liberdade, privacidade, intimidade e tratamento humanizado.

 Legislação brasileira e prevenção da violência obstétrica

Atualmente, a jurisprudência equipara a violência obstétrica à lesão corporal, prevista no artigo 129 do Código Penal. A violência ocorre quando os procedimentos são realizados de forma violenta e que tenham como resultados sequelas físicas e emocionais para a gestante e para o bebê.

A episiotomia é classificada como lesão corporal gravíssima e uma pena gravosa, porém, ainda que haja essa disposição amparada pelo Código Penal, há que se falar em uma demanda necessária de instauração de dispositivos que visem tutelar as diversas formas de criminalizar todas as condutas que podem vir a ser consideradas como violência obstétrica.

Ao observar os tipos penais que já existem, considera-se uma possível tipificação da violência obstétrica já que esta se encaixa na tipicidade, culpabilidade do agente e ilicitude da conduta realizada. Acerca da conduta podemos aqui expor: a utilização de procedimentos desnecessários, lesivos, abusivos ou omissivos, acarretando o resultado em problemas à saúde física ou psíquica da parturiente e até mesmo do nascituro, gerando assim o nexo de causalidade entre conduta e resultado.

Além dos já mencionados neste artigo, podem ser considerados como atos de violência obstétrica os procedimentos a seguir:

  • Violência exercida com gritos;

  • Procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação;

  • Falta de analgesia e negligência;

  • Recusa à admissão ao hospital (Lei 11.634/2007);

  • Impedimento de entrada de acompanhante (Lei 11.108/2005); 

  • Violência psicológica (tratamento agressivo, discriminatório, grosseiro, zombeteiro, inclusive em razão de sua cor, etnia, raça, religião, estado civil, orientação sexual e número de filhos); 

  • Impedimento de contato com o bebê;

  • Impedimento ao aleitamento materno;

  • Realização da cesariana desnecessária e sem consentimento; 

  • Realização de episiotomia de modo indiscriminado; 

  • Uso de ocitocina sem consentimento da mulher; 

  • Manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da gestante para empurrar o bebê); 

  • Proibição de a mulher se alimentar ou de se hidratar e obrigar a mulher a permanecer deitada.

Por ser uma conduta que só pode ter no polo ativo os agentes de saúde, sejam eles médicos, enfermeiros e/ou técnicos em enfermagem, bem como no polo passivo a parturiente e seu recém-nascido, temos um crime classificado doutrinariamente como bi próprio, pois tanto no polo passivo, quanto no ativo é constituído por condição especial dos agentes.

Violação dos direitos humanos x violência obstétrica

Ao analisarmos a violência obstétrica a luz dos Direitos Humanos, podemos concluir que esses são grandemente violados, principalmente no que tange ao Direito à vida, direito à informação, direito à não tortura, direito à saúde, direito à privacidade e direito à não discriminação. A prática da violência obstétrica leva a uma degradante situação que infringe diversas matérias e pactos de Direitos Humanos da ONU.

Os Direitos dos Pacientes, são um ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que abarcam o conjunto de convenções, pactos, declarações internacionais em matéria de direitos humanos; e a jurisprudência internacional construída pelos órgãos de monitoramento dos direitos humanos da ONU, do Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos, do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e do Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos. 

Dessa forma, nota-se que os Direitos Humanos dos Pacientes, enquanto ramo de uma disciplina específica, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, é essencialmente internacional, na medida em que os direitos humanos dos pacientes são aqueles previstos em documentos internacionais adotados no âmbito de organismos internacionais (ALBUQUERQUE, 2016). Nessa direção, os Direitos Humanos dos Pacientes compartilham com o Direito Internacional dos Direitos Humanos o princípio da dignidade humana, consensualmente reconhecido como seu princípio matriz (ANDORNO, 2014).

Os direitos humanos previstos em normas internacionais são aqueles que se inserem no contexto dos cuidados em saúde dos pacientes, quais sejam: direito à vida; direito a não ser submetido à tortura, nem a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; direito à liberdade e segurança pessoal; direito ao respeito à vida privada; direito à informação; direito de não ser discriminado; direito à saúde (ALBUQUERQUE, 2016).

Os direitos aqui já citados, são infringidos de diversas maneiras, o direito à vida inicialmente, pode vir a ser violado em casos de negativa à assistência médica e também, no que tange à efetividade da oferta de um tratamento/atendimento seguro à gestante.

 A falta de infraestrutura para prestação de serviços obstétricos emergências, ou até mesmo a negação à prestar a o atendimento de urgência com suas devidas peculiaridades constitui uma drástica violação ao direito à vida, vida essa dupla: da mãe e do nascituro.

Quando falamos sobre o direito de um tratamento seguro e a informação, tal direito é exposto em momentos que as gestantes devem ser amparadas e informadas o tempo todo de forma clara e segura acerca do seu estado de saúde, do estado de saúde do bebe, deve ser informada também sobre a possibilidade de escolha das vias de parto, em demandas advindas das pacientes para o acompanhamento seguro de seu estado de saúde, como questionamento acerca da higienização do profissional da saúde; direito a possuir acompanhante para a certificação dos procedimentos aplicados; direito a ser informada sob os cuidados a que se sujeitam; dentre outros.

 A Constituição Federal no art. 5.º, inciso X trata de proteger a privacidade assim assegurando: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Percebe-se que a consagração do direito à privacidade é tomada no sentido amplo que pode abranger todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade das pessoas.

 Para que ocorra a defesa do direito à vida privada, a gestante por meio do exercício da sua autonomia da vontade, deverá ter respeitado seu consentimento a qualquer tempo e em qualquer tipo de procedimento a ser realizado. Sendo assim, afirma-se que, esse direito de autonomia e vida privada se encontra em momentos quando por exemplo a paciente decide por não utilizar de métodos invasivos para exames de pré-natal e até mesmo no momento do parto, também envolve o direito de não se valer de procedimentos terapêuticos e de ser assistida por uma equipe médica que lhe dará liberdade para solicitar uma outra opinião médica quando sobrevier um conflito.

Conforme já dito anteriormente, grande parte dos procedimentos médicos são realizados sem que a paciente seja informada de tal necessidade e ou objetivo do procedimento, como por exemplo o uso de medicamentos para indução do parto e até mesmo a própria episiotomia. Sendo assim, a falta de informação ou até mesmo a supressão do esclarecimento devido resulta em forma de violência obstétrica unida à violação do direito humano de informação.

Outro direito amplamente violado é o direito à não discriminação, que pode ser compreendido como segundo Rios (2008, p. 21),objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, dos direitos humanos e fundamentais nas áreas político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública, essa diferenciação no campo médico e hospitalar pode vir a ocorrer em casos de diferença de tratamento dispensado às gestantes, devido sua cor, raça, opção sexual, nacionalidade e principalmente aquelas que se encontram nas minorias econômicas sociais

Caso Shantal Verdelho: um exemplo de violência obstétrica

Shantal Verdelho, influenciadora digital, deu à luz sua filha Domenica, em setembro de 2021 e esperava ter um parto humanizado. 

O sonho da humanização do parto juntamente com o respeito aos seus direitos como gestante e paciente veio por água abaixo quando seu médico, Renato Kalil, durante o parto realizou diversas atitudes completamente em desacordo com uma conduta ética, além de que expôs sua intimidade ao seu marido, xingou a parturiente e insistiu que a mesma realizasse diversos procedimentos que ela mesma no exercício do seu direito optou por não realizar.

Após alguns meses do parto, a influencer foi assistir ao vídeo junto de sua família e foi quando se deram conta de tamanha violência sofrida, Shantal buscou a justiça e atualmente processa criminalmente o médico. O médico está suspenso de suas atividades desde então.

Durante o vídeo do parto, o médico xinga a paciente o tempo todo, de forma brutal e desumana, conforme palavras de Shantal:

"Quando a gente assistia ao vídeo do parto, ele me xingava o trabalho de parto inteiro. Ele fala 'Porr*, faz força. Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porr*'... depois que revi tudo, foi horrível".

Segundo Shantal, Renato Kalil também expôs sua intimidade, de forma pejorativa, ao marido dela, Mateus Verdelho, durante o parto, que durou 48 horas. Ele chamou meu marido e falou: 'Olha aqui, toda arrebentada. Vou ter que dar um monte de pontos na perereca dela'. Ele falava de um jeito como 'olha aí, onde você faz sexo, tá tudo fodid*'. Ele não tinha que fazer isso. Ele nem sabe se eu tenho tamanha intimidade com meu marido"

A assessoria do médico se manifestou com uma nota oficial afirmando que o médico obstetra tem experiência de 46 anos na área e é um dos médicos mais respeitados do Brasil, sendo responsável por mais de 10 mil partos, sem nenhuma reclamação ou incidente. De acordo com a assessoria, o parto de Shantal ocorreu sem qualquer intercorrência e segundo ele, o vídeo que circulou nas redes sociais foi editado e retirado contexto. O médico também informou que tomaria providências jurídicas pelos ataques à sua reputação e apresentaria o vídeo na íntegra.

Como se não bastasse, por fim, no final do trabalho de parto, Kallil sugeriu que fosse realizada uma episiotomia afim de facilitar a saída do bebê. A prática não é recomendada pelo Ministério da Saúde e pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia.

Após a divulgação na mídia acerca do ocorrido com Shantal, outras  mulheres que tiveram contato com obstetra (ex-pacientes e ex-funcionárias)  vieram a público expor as ofensas e abusos praticados por ele.

A jornalista Samantha Pearson, por exemplo, definiu o contato com o ginecologista como "traumatizante". "Ele olhou, para mim, e disse: 'seu marido é bonitão e se você não emagrecer ele vai te trair'. Eu me senti super humilhada, essa que é a palavra, ele me fez sentir humilhada várias vezes", disse a jornalista, em entrevista ao SP1.

Em dezembro de 2021, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do MP-SP pediu outra investigação contra Kalil, desta vez, a respeito da acusação de Samantha Pearson. O caso de Shantal Verdelho segue tramitando no Ministério Público de São Paulo e o médico ainda está afastado de suas atividades.

A gestação, ainda que muito romantizada pela sociedade, pode se tornar um momento traumático para grande parte das mulheres, incluindo entre esses traumas diversas consequências que sem dúvidas ficam marcadas eternamente na memória das mulheres. De acordo com a OMS, uma em cada quatro gestantes sofrem ou podem vir a sofrer violência obstétrica, seja antes, durante ou até mesmo após o parto.

A externalização da violência obstétrica se dá de diversas maneiras, sejam elas físicas, morais e psicológicas, outra forma de violação recorrente é a inobservância a Lei Federal n° 11.108 de 2005, que prevê o direito ao acompanhamento, reiteradamente suprimido pelas dentro dos hospitais públicos e privados. A falta de informação e consentimento da gestante e familiares, no que concerne aos procedimentos a serem realizados, agravam o caso.

Conclusão

Diante da contextualização sobre a violência obstétrica neste artigo, conclui-se que esse tipo de violação se agrava cada vez mais na medida em que não há uma lei específica que disponha sobre suas consequências e proibições.

Ainda não há um tipo penal que criminaliza a conduta, o que leva a prática ser realizada cada vez mais nos sistemas de saúde, e não falamos apenas dos sistemas de saúde públicos, mas também privados, que atualmente mulheres vem denunciando diariamente os momentos de dor e tensão sofridos por elas durante e após o parto.

Por isso, devemos falar sobre uma imediata atenção estatal, sob pena da banalização e perpetuação das violências (BRASIL, 1998).

A parturiente é a principal e titular dos direitos dos pacientes que estão tipificados no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses direitos colocam a frente cada particularidade e dos enfermos que se encontram em posição de vulnerabilidade perante o corpo médico. Do ponto de vista dos Direitos Humanos dos Pacientes, a violência obstétrica é considerada como um direito feminino, da gestante como titular de direitos e respeito à sua vontade, a qual deve ser respeitado em primeiro lugar os cuidados em saúde, respeitando-se sua vida, segurança, integridade física e mental bem como seu acesso à saúde.

Cada peculiaridade de cada gestante que entra em uma rede de saúde no Brasil deve ser respeitada e de qualidade, trazendo para essas, segurança, atendimento digno, informações precisas e claras e principalmente, que a rede de médicos, enfermeiros, toda equipe hospitalar sejam um ponto de apoio para a parturiente nesse momento tão delicado.

Apesar da grande parte das mulheres com classe social mais baixa serem protagonistas desse episódio, há que se falar que tal prática circula por todo o mundo e sem espantos, ocorre também nos grandes centros obstétricos, em países desenvolvidos e com médicos e pacientes de alta classe social, isso só nos leva a concluir que a cultura de violência obstétrica é algo enraizado em nossa sociedade e que precisa ser combatida cada vez mais com urgência, precisão e principalmente uma legislação que reprima veemente tal atitude realizada pelos profissionais da saúde.

A legislação brasileira não garante, de modo eficaz, a figura da paciente obstétrica descrevendo seus direitos, os meios protetivos e as formas de defesa e luta pela sua autonomia perante o tratamento de pré natal, parto e pós parto. A prática da violência obstétrica não é punida com uma ferramenta legal eficaz para sua erradicação, uma vez que o paciente se encontra desamparado no ordenamento jurídico.

Sendo assim, é preciso mais que conscientização da rede de saúde. É necessário uma legislação específica a qual tipifique de acordo com os Direitos Humanos as condutas a serem adotadas que devem ser materializadas através da humanização do atendimento das pacientes, respeitando sua autonomia privada, o direito à informação, o direito à um tratamento humanizado, a privacidade, imagem, e que a legislação especifique também as condutas que são proibidas e as consequência da realização das mesmas pelos profissionais da saúde, gerando assim uma segurança e um direito à um pré-natal digno e principalmente um parto respeitoso e humano.

Referências

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