Imagine:
Seu José entra no consultório cabisbaixo. Reclama da insistência da esposa para que venha ao médico. Sim dói, atrapalha pra dormir, mas não há de ser nada. O médico escuta, examina, suspeita. Mais tarde, discute com um colega, “O que você acha?”. Chegam ao diagnóstico. O médico diz para aliviar a tensão, “Não vá exagerar na dose, semana passada teve um que dormiu 28 horas!”. O paciente dá risada, mas depois pensa, “Se o bebê acordar de madrugada, será que eu escuto?”.
Esta pequena história é mais do que o suficiente para mostrar como a Medicina é uma prática narrativa. Todos os envolvidos, seu José, o médico e o colega, contam histórias uns para os outros, e até para si próprios, sempre como uma forma de entender o que está acontecendo e decidir o que fazer.
As narrações, o storytelling, são fundamentais para a prática da medicina e esse fato já é reconhecido e debatido, pelo menos, desde os anos 60 e 70, quando a Antropologia Médica e a Bioética surgiram e se estabeleceram. Na época, ambas as linhas de pesquisa ofereciam novas possibilidades de troca entre as ciências da saúde, de um lado, e a antropologia e a filosofia, de outro. A colaboração resultou em frutos positivos que, a partir dos anos 2000, abriram caminho para o florescimento da macroárea das Humanidades Médicas.
Ciências da Saúde + Ciências Humanas e Sociais
As Humanidades Médicas buscam combinar as ciências da saúde com as ciências humanas e sociais. A área busca absorver elementos de antropologia, estudos literários, história, critica de arte, filosofia, entre outras, como forma de enriquecer a formação e a atuação dos profissionais da saúde. Seu objetivo maior é o de combater a industrialização e desumanização dos sistemas de saúde, por meio de uma prática empática que ofereça uma cura holística e humanizada.
As estratégias adotadas para integrar as ciências humanas às práticas da saúde têm sido muitas. Por exemplo:
- a história pode oferecer insights valiosos sobre como nossa visão de saúde e doença são moldadas, pelo menos parcialmente, pela sociedade e pela cultura;
- os estudos literários podem contribuir com uma maior capacidade de análise das narrações que surgem durante a interação entre médicos e pacientes;
- a antropologia pode oferecer maior sensibilidade cultural que incentive o respeito pela agentividade e individualidade do paciente;
- a filosofia pode ajudar a iluminar dilemas éticos complexos que podem apresentar-se durante os processos de cura.
A Medicina Narrativa é uma das linhas de atuação mais difusas na área e trata-se, fundamentalmente, do resultado de um diálogo entre a medicina e os estudos literários. Assim, estudantes e profissionais da saúde aprendem sobre teoria literária, narratologia, e até mesmo escritura criativa e participam em grupos de leitura sobre textos literários que tratam de doenças.
Os intuitos da discussão são majoritariamente três:
- criar um maior entendimento sobre as necessidades dos pacientes por meio de textos ficcionais e reais;
- exercer pensamento crítico e identificar conflitos morais por meio dos textos que podem eventualmente surgir na prática;
- oferecer uma oportunidade de mudança de perspectiva para que eventuais vieses e preconceitos sejam problematizados.
A prática da Medicina Narrativa é ampla, complexa, mas muito enriquecedora. No fim das contas, ela busca permitir que todos tenham palavra nos processos de cura. Afinal, a saúde e a doença não são um monopólio de médicos e enfermeiros. Todos adoecemos, todos sofremos e todos eventualmente morreremos. E essa experiência unificadora nos faz humanos.
Quer saber mais?
Para aqueles que desejem aprofundar-se no assunto, recomendo o livro de Dante Gallian, A literatura como remédio: Os clássicos e a saúde da alma, e de Rita Charon, Narrative Medicine: Honoring the Narratives of Illness. Boa leitura!
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