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A discussão de saúde pública de mesa de bar: suprimir ou mitigar, eis a questão

A discussão de saúde pública de mesa de bar: suprimir ou mitigar, eis a questão
Bruno Scarpellini
mar. 24 - 10 min de leitura
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Recentemente, tenho notado uma série de discussões polarizadas em grupos de profissionais de saúde, WhatsApp, epidemiologistas, leigos e familiares.

Assim como todos os brasileiros viram técnicos durante a Copa do Mundo e discutem apaixonadamente as escalações e condutas de técnicos em uma partida, tenho observado essa discussão também em estratégias de controle de pandemia, especificamente suprimir ou mitigar.

Mas você sabe o que significa cada uma no contexto de uma pandemia?

  • Mitigação: que se foca em retardar, mas não necessariamente em impedir a propagação da epidemia, reduzindo o pico de demanda de serviços de saúde e protegendo aqueles com maior risco de doenças graves da infecção.
  • Supressão: que visa reverter o crescimento da epidemia, reduzindo o número de casos a níveis baixos e mantendo essa situação indefinidamente.

Assim como todas as decisões que tomamos no dia-a-dia, existem prós e contras.

Estas decisões dependem de uma série de fatores:

  • capacidade e tipo de vigilância epidemiológica de um país,
  • infraestrutura e capacidade de gerar dados do país, geografia do local (ilha ou continente),
  • tamanho do país,
  • questões éticas e de direitos humanos,
  • capacidade da infecção gerar ou não imunidade permanente,
  • modo de transmissão,
  • pirâmide etária,
  • verdadeira incidência e letalidade da doença,
  • presença de comorbidades,
  • condições culturais de higiene,
  • saneamento básico,
  • momento da curva epidêmica em que estamos,
  • disponibilidade de testagem em massa de vírus respiratórios,
  • disponibilidade de tratamento específico efetivo e disponibilidade de entender a causa de óbito.

Antes de continuar, gostaria de trazer alguns fatos:

Em pronunciamento recente, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse em uma coletiva de imprensa que foram necessários 67 dias desde o primeiro caso relatado para atingir os primeiros 100.000 casos, 11 dias depois para atingir 200.000 e apenas mais 4 dias para superar as 300.000 infecções.

A capacidade reprodutiva do vírus (R0) é de 2,28 – isto é, cada pessoa infectada tende a infectar 2-3 pessoas.

O novo Coronavírus possui capacidade de se decuplicar (multiplicar o total de casos por 10x) a cada 7,2 dias – em média.

O modo de transmissão dos Coronavírus humanos comuns acontece das seguintes formas:

  • entre contatos próximos (em um raio de 1-2 metros) através de gotículas respiratórias produzidas com uma pessoa infectada, tosse ou espirra,
  • contato através de fômites.

 

É possível que haja transmissão fecal-oral. Um estudo mostrou oito crianças que testaram persistentemente positivo em amostras retais, mesmo após o teste de amostra da nasofaringe ter sido negativo. Cabe ressaltar que as medidas sugerem que a reprodução viral no sistema digestivo pode ser maior e durar mais do que no trato respiratório.  Outro grupo demonstrou a possibilidade de eliminação viral prolongada nas fezes, por quase 5 semanas após amostras respiratórias dos pacientes testarem negativo para SARS-CoV-2.

Existem inúmeros dados que corroboram a teoria de portadores assintomáticos serem os atores principais de transmissão comunitária já que eliminam partículas virais por secreção nasal e gotículas antes do aparecimento dos sintomas.

Em 20/2/2020, a OMS publicou um relatório que reporta uma taxa de letalidade de 3,8%. Este dado pode variar conforme os fatores discutidos acima como por exemplo a capacidade da infecção gerar ou não imunidade permanente.

Ou seja, para sabermos a verdadeira incidência e letalidade de uma doença, precisamos de testagem em massa. Da mesma maneira, precisamos entender se a infecção por Covid-19 gera imunidade permanente.

 

Agora, trago algumas dúvidas e incertezas:

  • Como o Covid-19 é transmitido atualmente no epicentro de Wuhan?
  • Quão transmissível e patogênico é Covid-19 no nível terciário e quaternário e a transmissibilidade entre seres humanos?
  • Qual é importância da transmissão assintomática do vírus?
  • Qual a importância da via fecal-oral na transmissão de Covid-19?
  • Como o Covid-19 deve ser diagnosticado, qual o melhor método a ser utilizado e quais reagentes de diagnóstico estão disponíveis e acessíveis?
  • Como o Covid-19 pode ser tratado e quais opções de tratamento podem ser utilizadas?
  • As vacinas inativadas são uma opção viável para o Covid-19?
  • Qual a verdadeira origem do SARSCoV-2 e Covid-19? Para resumir uma longa história, dois vírus parentais de SARS-CoV-2 já foram identificados.
  • Se o SARS-CoV-2 é menos patogênico. Se a patogenicidade reduzida da SARS-CoV-2 é o resultado da adaptação ao homem, será de grande importância identificar a base molecular dessa adaptação.

 

Voltando a discussão da mesa de bar, temos de um lado:

1. Mitigação  

Este grupo acredita que a estratégia da quarentena ou “lockdown” pode ser um tiro pela culatra já que as crianças podem acabar se socializando de qualquer maneira; se o fechamento da escola levar as crianças a passar mais tempo com familiares idosos suscetíveis; ou a presença de crianças em casa pode vir a perturbar a capacidade de trabalho dos pais e muito mais.

O fechamento da escola também pode diminuir as chances de desenvolver imunidade de rebanho em uma faixa etária que é poupada de doenças graves. Eles acreditam que achatar a curva para evitar sobrecarregar o sistema de saúde é conceitualmente sólido - em teoria.  No entanto, se o sistema de saúde ficar sobrecarregado, a maioria das mortes extras pode não ser causada por Coronavírus, mas por outras doenças e condições comuns, como ataques cardíacos, derrames, traumas, que não foram adequadamente tratados.

Se o nível da epidemia sobrecarregar o sistema de saúde e medidas extremas tiverem eficácia modesta, o achatamento da curva poderá piorar as coisas: em vez de ficar sobrecarregado durante uma fase curta e aguda, o sistema de saúde permanecerá sobrecarregado por um período mais prolongado. Essa é outra razão pela qual precisamos de dados sobre o nível exato da atividade epidêmica.

Outro ponto é que não sabemos quanto tempo as medidas de distanciamento social e os bloqueios podem ser mantidos sem grandes consequências para a economia, a sociedade e a saúde mental. Podem ocorrer evoluções imprevisíveis, incluindo crise financeira, agitação, aumento de taxas de depressão/ansiedade/estresse pós-traumático/suicídio, conflito civil, guerra e um colapso do tecido social.

No mínimo, se faz necessário a geração de dados imparciais de prevalência e incidência para orientar a tomada de decisão. Segundo John P.A. Ioannidis (professor de Stanford) no cenário mais pessimista, se o novo Covid-19 infectar 60% da população global e 1% das pessoas infectadas morrerem, isso se traduzirá em mais de 40 milhões de mortes globalmente, correspondendo à pandemia de influenza de 1918. A grande maioria dessas mortes seria formada por pessoas com expectativa de vida limitada. Isso contrasta com 1918, quando muitos jovens morreram.

 

2. Supressão

Esse grupo se utiliza de premissas básicas da epidemia de Gripe Espanhola de 1918 na qual medidas de isolamento social se mostraram efetivas para achatar a curva. Como contestação dos argumentos do grupo mitigação, utilizam como base o artigo recém-publicado pelo Colégio Imperial de Londres o que demonstra que políticas ótimas de mitigação (combinando isolamento domiciliar de casos suspeitos, quarentena domiciliar de pessoas que moram na mesma casa que casos suspeitos e distanciamento social de idosos e outras pessoas com maior risco de doença grave) podem reduzir o pico da demanda de assistência médica em 2/3 e 1/2 de mortes.

No entanto, a epidemia mitigada resultante provavelmente ainda resultaria em centenas de milhares de mortes e os sistemas de saúde (principalmente unidades de terapia intensiva) sendo sobrecarregados. Para os países capazes de alcançá-lo, isso deixa a supressão como a opção política preferida.

Ainda utilizando o artigo supracitado, esse grupo acredita que a supressão exigirá minimamente uma combinação de distanciamento social de toda a população, isolamento dos casos em casa e quarentena dos membros da família. Pode ser complementado pelo fechamento de escolas e universidades, embora se deva reconhecer que esses fechamentos podem ter impactos negativos nos sistemas de saúde devido ao aumento do absenteísmo.

O grande desafio da supressão é que esse tipo de pacote de intervenção intensiva - ou algo equivalente na redução da transmissão precisará ser mantido até que a vacina se torne disponível (potencialmente 18 meses ou mais) - dado que prevemos que a transmissão se recuperará rapidamente se intervenções não são mais realizadas. Mostramos que o distanciamento social intermitente - desencadeado por tendências na vigilância de doenças - pode permitir que as intervenções sejam relaxadas temporariamente em janelas de tempo relativamente curto, mas as medidas precisarão ser reintroduzidas quando os números de casos se recuperarem.

Por fim, enquanto a experiência na China e agora na Coréia do Sul mostra que a supressão é possível a curto prazo, resta saber se é possível a longo prazo e se os custos sociais e econômicos das intervenções adotadas até agora podem ser reduzidos.

 

A história sempre tem dois lados. Infelizmente, só saberemos isso no futuro ou quando tivermos um sistema de vigilância epidemiológica ativa para vírus respiratórios com suporte e integração de dados (big data) associado a um sistema de testagem rápida e maciça de teste molecular para vírus respiratórios (incluindo o Covid-19) bem como a disponibilidade de sorologia para avaliarmos a prevalência da doença. Além disso, precisamos de um sistema de gestão de saúde populacional efetivo.

As evidências acima ainda corroboram que somos seres bio-psíquico-econômico-social.

Para concluir, uso a seguinte frase:

“Não sabemos quando uma pandemia pode ocorrer. Mas podemos ter certeza de duas coisas: tudo o que fazemos antes de uma pandemia parecerá alarmista. Tudo o que fazemos após uma pandemia parecerá inadequado. Esse é o dilema que enfrentamos, mas não deve nos impedir de fazer o que podemos para preparar. Precisamos chegar a todos com palavras que informam, mas não inflamam. Precisamos incentivar todos a se prepararem, mas não em pânico.” Secretário Michael Leavitt, Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA Fórum de Liderança Pandêmica da Gripe, 13 de junho de 2007.

E como diria o famoso programa televisivo dos anos 90: “O final, você decide!

 


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