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A arte do relacionamento médico-paciente

A arte do relacionamento médico-paciente
ANA CAROLINA AZEVEDO SALEM
mai. 2 - 17 min de leitura
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A arte do relacionamento médico-paciente

I Simpósio De Medicina De Londrina conta com a participação do Dr. Celmo Celeno Porto, autor do livro Semiologia Médica

Por Ana Carolina Salem e Filipe Pressuto

Há alguns dias atrás, tivemos o prazer de conhecer pessoalmente e ouvir os ensinamentos de um dos maiores mestres da medicina no Brasil, o Prof. Dr. Celmo Celeno Porto. O I Simpósio de Medicina, organizado pelo comitê local da IFMSA (International Federation of Medical Students Association) da Universidade Estadual de Londrina e pelo Centro Acadêmico de Medicina da PUC- Londrina, contou com a participação de três grandes médicos: Dr. Pedro Gordan, Dr. José Eduardo de Siqueira e Dr. Celmo Celeno Porto, para falarem sobre a “Arte do relacionamento médico-paciente”.

O Simpósio iniciou com uma fala do Dr. Leandro Diehl, mediador do evento e docente do Departamento de Clínica Médica da UEL, sobre a importância de uma boa anamnese e exame físico, e da relação médico-paciente, que são “alicerces fundamentais da medicina, estabelecidos por Hipócrates, ainda no século IV a.C.” (...) Dessa forma, “o advento da tecnologia de maneira alguma torna menos importantes, a anamnese bem feita, o exame físico bem feito, a boa relação médico-paciente, na verdade os torna ainda mais importantes, para evitar diagnósticos e tratamentos inadequados baseados apenas em resultados de exames solicitados muitas vezes de maneira inadequada.” Pensando nesses aspectos, é que o simpósio foi estruturado.

Na foto (da esquerda pra direita): Dr. Pedro Gordan, Dr. José Eduardo de Siqueira e Dr. Celmo Celeno Porto

Durante o evento, tivemos o prazer de entrevistar cada um dos palestrantes. Para o Dr. Pedro Gordan, perguntamos sobre o futuro da educação médica:

AM - Há mais de 100 anos atrás quando Flexner lançou aquele relatório para avaliar as escolas médicas dos EUA, ele descreveu as disparidades na qualidade da educação médica com a seguinte frase: Está sendo formado grande número de profissionais “não educados e mal treinados”, devido principalmente ao excesso de escolas “comerciais” não vinculadas a uma universidade e que visavam apenas o lucro, com o ensino fundamentado apenas na base teórica.

A partir daí houve profundas mudanças que repercutiram em escolas médicas do mundo todo. Hoje percebemos que a realidade do Brasil, não é muito diferente da de 100 anos atrás nos EUA, com relação à qualidade da educação, o governo está abrindo cursos em lugares que ainda não tem as mínimas condições de ofertar uma educação de qualidade. Pensando nisso, como o sr. acha que será o futuro da educação médica no Brasil? Como será a faculdade de medicina daqui a dez, vinte anos?

Dr. Pedro Gordan - Uma enorme Injustiça foi feita com Flexner, atribuindo–lhe poderes de criar um modelo de Educação Médica para o mal, quando na verdade o Flexner Report apontava falhas e erros de um Sistema Educacional Caótico, uma esculhambação generalizada, ele na verdade sugeriu colocar ordem no Sistema, e o fez, de maneira científica e organizada. Obviamente, tratava-se de outra época e muitas das suas ideias foram apropriadas pela Associação Médica Americana, a Indústria farmacêutica e hospitalar e outras forças conservadoras para manter um Sistema de Saúde injusto e altamente elitista.

 Por outro lado, como sempre ocorre na História, o pêndulo, no Brasil, está pendendo para o outro lado.  A tentativa de se criar Escolas de Medicina para atender os Serviços de Saúde, por bem intencionados, mas ignorantes, sem que se crie uma estrutura educacional apropriada resulta no que se vê hoje no País: a proliferação de Escolas Médicas sem Hospitais e Sem Serviços com estrutura de treinamento, apoiadas num Sistema de Saúde Caótico, desestruturado e sub financiado. Voltamos, portanto, há 104 anos atrás: Escolas precárias, destinadas ao lucro, estimuladas por ignorantes e, agora, mal intencionados, com interesses eleitorais imediatos,  desesperadamente necessitando de um ou de vários ‘Flexneres’ para por ordem na esculhambação. Flexner está morto. Viva Flexner!!

 

Ao Dr. José Eduardo de Siqueira perguntamos sobre o papel do estudante de medicina no campo da bioética:

AM - As discussões do campo da bioética atualmente alcançaram grande repercussão. O papel de construir conceitos éticos e morais, que por muito tempo foi desempenhado principalmente pela religião, hoje é campo de disputa entre ela e várias áreas científicas e filosóficas. O que o doutor acha do papel das ciências médicas nessas discussões e o que acha do modo como os debates estão sendo conduzidos em nosso país?

Dr. Siqueira - Veja, a bioética nasceu em 1970 nos Estados Unidos e o autor era um biólogo, quando ele era [parte] de uma equipe de oncologistas. Em 1971 foi formado o primeiro instituto dos Estados Unidos, o Instituto Kennedy, já com uma visão marcadamente biomédica, por quê? Porque os grandes conflitos sempre foram na área prática: o avanço da ciência, mas, sobretudo o avanço da ciência que ocupa a esfera do ser humano. Então, por exemplo, nos anos 70 nós herdamos a questão da fertilização in vitro, que avançou muito, então, sobre a pergunta que você fez, a medicina tem tudo a ver com isso. Uma coisa é o regramento de códigos, outra coisa é a reflexão ética. Eu faço uma distinção entre moral e ética: a moral é um conjunto de normas, a sociedade tem que conviver com um conjunto de normas para ter um equilíbrio, a ética é uma reflexão sobre as regras para mudar as regras.

O que o Conselho [Conselho Federal de Medicina] faz, por exemplo, o Conselho tem feito muito, vou comentar da resolução sobre a ortotanásia: essa resolução foi no sentido de humanizar e tornar a passagem para a morte uma coisa com dignidade, respeitar a biografia daquela pessoa, o que não era respeitado.

Como o direito viu isso? Muito mal, é o comentário que existe uma distância muito grande entre os operadores de direito e nós da medicina. Porque nós temos uma visão muito clara, na nossa frente está o sofrimento humano e o operador de direito ele tem uma regra, um código e, realmente, nem tudo cabe no código: nem tudo que é legal é ético e nem tudo que é ético é legal. Por exemplo, a aprovação da interrupção da gestação do feto anencefálico foi uma coisa recente, era vedado isso, e quem é que conseguiu avanço nessa discussão? Os profissionais da área da saúde, demonstrando de forma científica que o feto anencefálico não tinha vida de relação nenhuma e nunca teria, então era um sofrimento para a mulher levar aquela gestação a termo.

Eu acho que a sociedade tem uma doença gravíssima que e o individualismo, o hedonismo, não há um espirito de solidariedade, de acolhimento do outro. Nós médicos temos muito que fazer, pois na medida em que você acolhe uma pessoa, você está demonstrando que o acolhimento existe. A solidariedade humana é algo absolutamente imprescindível para o ser humano viver, ou seja, a sociedade não tem paz, mas a paz é fundamental, a sociedade vive um momento de desamor, mas o amor é fundamental, a sociedade não tem compaixão para com aquele que é vulnerável e sofre, mas compaixão é fundamental. O que o século XXI terá de fazer é recuperar esses valores que perdemos, sair de um modelo utilitarista para um modelo cooperativo.

AM - Como o doutor enxerga o papel do estudante de medicina nessa área? Estão formando médicos capazes de discutir de forma construtiva sobre esses assuntos?

Dr. Siqueira - O meio é muito adverso, o que a sociedade oferece para vocês [estudantes] é uma situação muito sofrida, porque a ideia do Estado é produzir um número enorme de médicos para ter como saco de farinha, para atender em todo lugar.

O que vocês têm que fazer? O que o médico recém-formado tem que fazer? Tem que ter dignidade: “eu não atendo uma pessoa em 2 minutos”, “eu não posso aceitar um emprego para o qual seja pago de uma maneira indigna”. Isso faz parte da ação de cada um.

Vocês estão vivendo um momento de extrema dificuldade moral, vivemos em uma sociedade que só quer impor, o que eu acho é que não podemos nos curvar perante isso. Se você analisar estudos que demonstram grau de acolhimento da população, os médicos são muito bem acolhidos, a população reconhece o trabalho do médico, mas às vezes a situação é uma armadilha para o médico porque ele vai trabalhar em um lugar que não tem condições de infraestrutura, ele tem que atender de uma maneira que ele sabe que não é adequada, mas ele atende, então ele passa a ser cúmplice daquela situação. O que eu falo a vocês médicos jovens é: não aceitem isso! Se fizéssemos isso sistematicamente, seria diferente. Eu fui trabalhar em São Paulo, recém-formado, em um posto e o chefe disse que eu tinha que atender em 5 minutos em um lugar que não tinha nem estetoscópio, eu disse que não, que traria meu estetoscópio, meus aparelhos e atenderia no tempo que fosse necessário. Ou seja, a gente tem que se valorizar, nosso trabalho é um trabalho que só nós podemos fazer, se você não se valoriza acaba sendo cúmplice da situação.

AM - E no caso dos planos de saúde?

Dr. Siqueira - Os planos se aproveitam de uma situação que é uma divisão da própria categoria médica. Como o que surgiu nos USA, o Medcare, que começou a pagar mais ao profissional que pede menos exames e atende mais pacientes, qual a ideia? Faça de qualquer jeito, se desincumba desse negócio que você ganhará mais. Quando um médico aceita isso, não só está se desonrando quanto está jogando essa coisa para toda a categoria.

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Na foto: Dr. Celmo Celeno Porto e Dr. Leandro Diehl

Sobre a relação médico-paciente e o uso de novas tecnologias na prática médica, perguntamos ao Dr. Celmo:

AM - Como o sr. vê o modo como a relação médico-paciente é abordada na formação médica atualmente?

Dr. Celmo Celeno Porto - Considerando que a relação médico-paciente é a essência da medicina, eu acredito que a abordagem ainda não está nos níveis que precisará chegar. Ainda se dedica pouco tempo, ainda não há estratégias educacionais que permitam o aprendizado, então não vejo ainda como satisfatória a abordagem da relação médico-paciente na formação.

AM - O que o Dr. pensa sobre o uso de novas tecnologias na prática médica? O uso de aplicativos para smartphones, tablets, por exemplo, podem otimizar a consulta e ampliar o poder da semiologia no diagnóstico de doenças?

Dr. Celmo Celeno Porto - A tecnologia é absolutamente essencial na prática médica, e ainda é pouco, ainda precisa mais. E vamos ter mais tecnologia. O grande segredo é vencer o desafio que é conciliar o método clínico, que permite o contato direto com o paciente, com os recursos tecnológicos. Cada vez vão ser mais usados, é inevitável, o mundo eletrônico/digital faz parte do nosso momento, e todos os pacientes hoje têm acesso ao mundo digital, seja internet, seja smartphone, tablet e eles vão usar cada vez mais. Nós devemos aprender a usar, otimizar esse material que está sendo colhido para poder melhorar a prática médica.

Acredito que a consulta online ainda não será possível, mas o que vai ser possível, e já é uma proposta, é a monitorização. A consulta é pessoal, é frente a frente, é olho no olho, mas depois que ela é feita, que eu já tenho o conhecimento, o diagnóstico, já tenho uma proposta terapêutica, não há nenhum problema em fazer a supervisão/monitoramento online, ou por vários recursos disponíveis.

AM - Como o uso dessas novas tecnologias tem influenciado a relação médico-paciente?

Dr. Celmo Celeno Porto - Têm influenciado mal, porque o médico acha que a tecnologia substitui o contato direto, isso é um grande mal. Isso é um grande prejuízo, isso só piora a prática médica. Tem que conciliar, o desafio é conciliar o exame clínico, o contato com o doente, com os recursos tecnológicos.

AM - Nos últimos anos, houve uma mudança geral na relação entre médicos e pacientes. Com o surgimento do paciente expert (e do Dr. Google), o médico deixa de ser o detentor exclusivo do conhecimento, porque o paciente tem a chance de buscar informações na internet e muitas vezes já chegar com o “diagnóstico pronto” da sua doença. Diante disso, o que fazer quando nos deparamos com um paciente assim (o “paciente expert”)?

Dr. Celmo Celeno Porto - Todos os pacientes vão consultar o ‘Dr. Google’, esteja prevenida quanto a isso. Eles vão ter um mundo de informações, basta você colocar lá dor de cabeça, experimenta fazer isso, vão aparecer milhares de informações, e o doente vai receber. Mas ele não sabe elaborar, ele não tem a capacidade de saber qual informação é boa pra ele, então quem vai ajuda-lo vai ser o médico, no momento que ele chega lá no consultório, às vezes até mais confuso, com tanta informação. O médico tem que admitir que hoje isso faz parte da prática médica, e nem pode ficar hostil, ofendido, ele deve ver com naturalidade. A informação quando ela é bem orientada, ela só favorece. Então, se o médico ajuda o paciente a encontrar sites adequados, ele pode indicar sites adequados. Por exemplo, Alzheimer, a família precisa aprender mais sobre Alzheimer, indica pra família um site adequado, vai ser só bom.

AM - Para finalizar, gostaria de saber qual o conselho o sr. poderia dar para nós, futuros médicos?

Dr. Celmo Celeno Porto - Eu não gosto de dar conselhos, eu gosto de ajudar vocês a encontrar os caminhos. Que caminho é mais adequado? Primeiro, insubstituível: Contato com o paciente. Esse é insubstituível, nem o livro do Porto vai substituir. (risos) Então, primeira orientação, desde o início do curso, faça contato direto com o paciente. De preferência com supervisão, com alguém que possa te ajudar a vencer aquela fase inicial, mas mesmo quando não tem supervisão, vá junto ao paciente, vá ‘apanhar’, vá ficar desorientada. Segunda coisa que eu diria pra vocês, entender o contexto não só da doença, mas também do doente. A medicina não é objetiva: ‘tem uma doença, dou um remédio’; não é assim. A medicina precisa entender o contexto, é preciso envolver a família, o trabalho do paciente, ai então você poderá ter uma boa formação médica. Sempre entender o paciente como pessoa, acima de tudo colocar a condição humana do paciente. A doença é uma intercorrência, e às vezes você nem vai curá-la, as vezes você vai controla-la. Mas outras vezes você não vai nem controla-la, ela é incurável, o paciente vai evoluir, mesmo assim, vá cuidar do paciente. Então você troca o paradigma de curar, pelo de cuidar. Esse é o grande segredo: O sucesso seu na profissão, vai ser quando você aprender a cuidar dos pacientes.

Em um tempo em que exercer a profissão se tornou algo tão desafiador, devido às condições muitas vezes precárias as quais médicos e pacientes estão expostos; em um cenário onde prevalecem medidas eleitoreiras, guiadas apenas por interesses financeiros, e não por uma preocupação real com a saúde pública, é nesse período de transição, revolta e vontade de mudança, que nós tivemos a oportunidade de ouvir as palavras inspiradoras de três grandes mestres da medicina do Brasil. Ensinamentos que podemos levar como exemplo, para não desanimar diante das adversidades, mas sim lutar para uma prática médica cada vez melhor, cada vez mais humana. E por fim, como bem disse Dr. Leandro Diehl: não deixar que “uma profissão que tem milhares de anos de existência, seja vítima de caprichos fortuitos e circunstâncias transitórias”.

Celmo Porto 1 Autógrafo do Dr. Celmo Celeno Porto para o Academia Médica

 


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