Vou te contar um segredo: caso você ainda não saiba, a depressão é uma doença multifatorial. Isso quer dizer que a sua origem tem influência dos genes, do ambiente em que você vive, do estilo de vida que você leva, da sua história de vida, etc. Infelizmente, muita gente dita "especialista" se apega a apenas um dos aspectos da origem da doença e parece tomar aquilo como verdade absoluta, como se nada mais houvesse, tentando simplificar o que não é tão óbvio assim.
Então, antes de você prosseguir com este texto, gostaria de avisá-los, caros leitores, que minha abordagem sobre o tema mencionado no texto é neurobiológica, médica. Não como uma verdade única, mas porque estou um tanto farto de ver/ler/ouvir um monte de m... nas mídias que, de alguma forma, aumenta a ignorância e o preconceito sobre doenças mentais, muitas vezes atrapalhando o correto tratamento delas.
Cada uma dessas desordens tem suas peculiaridades, mas neste artigo, vou focar especificamente no transtorno depressivo maior ou, simplesmente, depressão. Se você é daqueles que não consegue pensar um pouco fora da sua caixinha de conceitos já estabelecidos, peço que gaste seu tempo lendo outra coisa, talvez alguma informação útil e inquestionável naquele vlog/blog de sua preferência. Dito isso, vamos lá...
Dia desses, estava eu rolando minha lista de vídeos sugeridos no YouTube e um dos títulos me chamou a atenção. Como meu objetivo aqui (ainda) não é arrumar treta com ninguém, apenas tentar esclarecer alguns temas às vezes nebulosos, prefiro não identificar o autor e o vídeo.
Trata-se de uma terapeuta britânica a quem admiro muito (e não, ainda não deixei de admirá-la) e que, em seu vídeo, basicamente diz que a ideia de desequilíbrios químicos cerebrais relacionados à depressão é uma invenção da indústria farmacêutica para vender remédio e lucrar em cima do sofrimento alheio. Essa fala me incomodou bastante, achei um desserviço, e me motivou a trazer algumas informações à luz e a promover algumas reflexões entre vocês, leitores.
No tal vídeo, a terapeuta pontua três razões para que uma pessoa esteja profundamente deprimida a ponto de querer por fim à sua vida:
Não seguir os desejos do seu coração, ou seja, ter tomado decisões ao longo da vida que o colocaram onde você não gostaria de estar de fato (profissão, relacionamento, etc.);
Ser excessivamente crítico e severo consigo mesmo o tempo todo;
Desconexão social, ou seja, isolar-se do convívio de amigos e familiares.
Ok, e daí? Por que para assumir que uma abordagem psicossocial da depressão ser verdadeira seria necessário excluir os agentes biológicos envolvidos? Mesmo que alguns defendam que a psique é uma entidade externa ao corpo (e não estou aqui fazendo nenhum juízo de valor sobre isso), ela se manifestaria no corpo através do cérebro, que é o que pode ser visto, analisado de forma objetiva, seguindo o que foi adotado como método científico.
Nesse contexto, prefiro adotar a definição do psicólogo cognitivo e professor de Harvard, Dr. Steven Pinker, que diz que "a mente é o que o cérebro faz". Então, sim, o comportamento depressivo pode advir dos três pontos ressaltados acima e, sim, isso está relacionado a desequilíbrios neuroquímicos.
E aqui nem estou entrando no mérito da depressão endógena, isto é, aquela cuja etiologia envolve desequilíbrios hormonais e têm caráter hereditário, mais uma prova de que o comportamento depressivo tem forte base biológica. Não podemos tratar algo tão sério e multifacetado de forma tão maniqueísta. Sempre desconfio de soluções simples para questões complexas.
Embora eu não seja propriamente alguém que trabalhou em bancada de laboratório, ao longo da minha formação convivi e discuti diversos aspectos biológicos e neuroquímicos da depressão com especialistas da área, colegas que estavam ali manipulando animais, analisando tecidos cerebrais no microscópio, medindo neurotransmissores e seus metabólitos (e virando noites em laboratório sem ganhar sequer um centavo a mais de bolsa por isso). Além disso, li e reli mais de 400 artigos científicos para ter embasamento técnico para escrever a minha tese.
Por um lado, alguém pode argumentar que muitos estudos publicados são patrocinados pela indústria farmacêutica. Porém, isso, quando ocorre, está explicitamente descrito nos artigos - é uma exigência das revistas científicas. Mas garanto que esses trabalhos são minoria na imensidão da pesquisa já realizada na área.
Por outro lado, aqui no Brasil a gente não tempo e nem dinheiro (muito menos da indústria farmacêutica) para ficar gastando com o objetivo de sustentar teorias da conspiração. Ainda assim, muitos dos nossos grupos de pesquisa encontram as mesmas evidências a respeito dos desequilíbrios químicos observados em pacientes depressivos (ou em modelos animais) aqui e no mundo.
Isso quer dizer que os remédios são sempre efetivos e que a indústria farmacêutica quer o bem da humanidade e o fim da depressão? Acho que ninguém aqui é ingênuo a ponto de se esquecer que estamos todos em um sistema em que as corporações visam ao lucro e isso não se reduz apenas ao sistema de saúde. É claro que a discussão em torno do lucro envolvido nas questões de saúde são muito mais complicadas, afinal, estamos falando de vidas. E, obviamente, não estou aqui defendendo nenhum sistema e nenhum tipo de indústria, estou apenas tentando ser realista e objetivo quanto aos aspectos farmacológicos envolvidos no tratamento da depressão.
E vou te contar outro segredo: alguns efeitos colaterais de muitos remédios que você usa para uma série de coisas também não foram avaliados a longo prazo. Deixemos um pouco a hipocrisia de lado. A famosa frase "se você tivesse diabetes ou pressão alta não tomaria remédio todos os dias sem questionar?" nunca foi tão verdade. É muito mais cômodo para muitos pacientes tomar X comprimidos por dia do que mudar seu estilo de vida, sua alimentação etc.
Frases como "Doutor, me passa o remedinho aí, mas não me tira o bacon" são realidade e são mais comuns do que se pensa. Há pacientes que pensam diferente? Claro que há! Assim como há médicos que também insistem na conscientização de seus pacientes por um tratamento mais efetivo, sejam eles medicamentosos ou não, multidisciplinares e por aí vai.
Voltando à questão da depressão, há uma série de reportagens mostrando que as pesquisas apontam para uma maior efetividade no tratamento quando há associação entre terapia medicamentosa e psicoterapia (terapia de fala). Entretanto, em algumas situações, psicoterapia é tão eficiente quanto o uso de medicação, enquanto em outras, não.
Já se sabe que o cérebro é plástico, ou seja, que novas conexões podem ser feitas, bem como outras podem ser desfeitas. Sendo assim, ele pode se adaptar aos remédios, exigindo maiores doses, a troca ou mesmo a associação de medicamentos, podendo também aprender habilidades de enfrentamento em paralelo ao uso de medicação. Até mesmo a mudança na dieta do indivíduo pode auxiliar no tratamento para a depressão. Cada caso é um caso e loucura é querer generalizar.
Se você também acha que na Psiquiatria muitos tratamentos foram "inventados" com base na tentativa e no erro ou mesmo no lobby feito pela indústria farmacêutica, eis outra informação: quase tudo no sistema médico* foi (e ainda é). Entretanto, quase ninguém questiona um série de tratamentos médicos usados a torto e a direito por aí. As áreas do conhecimento evoluem, e isso só ocorre quando erros do passado são repensados, questionados, e novas e melhores práticas são adotadas.
Existem profissionais capacitados, humanos, sérios, que vão prescrever medicação quando for necessário, que vão retirar a medicação quando for adequado, que vão propor outras alternativas ou tratamentos coadjuvantes para alcançar a melhora do paciente. Profissional ruim existe em todas as áreas e a medicina não é uma exceção. Apenas não deixe que o preconceito e opiniões obsoletas e desinformadas mantenham o estigma em torno do tratamento das doenças mentais, principalmente da depressão, que, sim, pode matar.
(*) Fiz questão de diferenciar "sistema médico" de "medicina", pois acredito que a medicina em si, por natureza, foca no bem-estar do indivíduo, no empenho em não fazer mal ao paciente, enquanto que o sistema médico pode envolver interesses humanos escusos que maculam o que a medicina se propõe.
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