E daqui para baixo é spoiler de 2021 então se você ainda tiver aquela criança interior sensível e se incomodar com expectativa melhor parar aqui. E sugiro você ler a parte 1 porque vou evitar ser repetitivo.
A série rebuild traz tudo o que a série anterior trouxe, Shinji deprimido, a Asuka mais histrionica, Misato mentindo sobre si e a todos, Kaji com seu transtorno de stress pós trauma, Dra. Akagi tendo que lidar com sua maternidade artificial com o sistema de computador MAGI(que é uma alusão ao cérebro de sua mãe, Id, Ego e Superego) e o pai de Shinji obcecado com o meme “entra no robô”.
Nesse caso a nova versão como a própria se declara, “muito mais fanservice” e para não estragar a graça e fugir do tema não irei me ater a essa crítica, deixo a fãs e não tão fãs assistirem.
Mas de fato é um sucesso, só no Japão lançado em janeiro e nos outros países em abril, a conclusão desses longas de 4 filmes faturou mais que muitos filmes da Marvel no mundo. E eu que sou um chato para assistir filme no celular esperei até meia noite para ver na Amazon (Patrocina eu).
O que me surpreendeu a ponto de querer mostrar aos médicos, estudantes de medicina e entusiastas da área foi, além do que citei no post anterior, e a partir do 3º filme divergiu da original, criando esse e mais um 4º filme que mesmo tendo nada a ver com a série original(que foi a parte 1) na minha opinião é quase perfeito para encerrar a série Evangelion e saúde mental.
Não vou me ater até o 2º filme porque ele repete exatamente a série até o meio e no 3º e o 4º filme mostram algo sutil a medicina que é enorme se enxergado.
O execrável Shinji Ikari no 3º filme encontra-se 14 anos após o 2º filme, com a mesma aparência, mentalidade, confuso perante a rejeição extrema de todos aos seus antigos amigos, com seu quadro clínico se deteriorando a ponto de regredir a maturidade, tornando-se muito mais vulnerável em busca de aceitação.
Asuka com a mesma aparência de 14 anos mais mal-humorada e com o aspecto da velha ranzinza, uma imaturidade de mulher em corpo de criança, porém seu "histrionismo" deu espaço a alguém que não superou a vontade de vencer e sim desistiu(O que é uma forma de manifestação de algum red flag em saúde mental).
Um personagem meio X que é Mari observando os protagonistas como bichinhos de laboratório, e digamos que seja uma mistura de fanservice, o complexo de édipo e a sexualidade, esses batem forte nessa personagem e existe uma história a parte que nos filmes não é mostrada só no mangá.
A história da Mari na trama tem fatores psicológicos a parte e até tem alguns estudos, mas para evitar o caos só coloco os parênteses, pois até o autor fez isso colocando a história dela em outro lugar.
Nessa mistura de ódio e rejeição, Shinji acaba sendo misteriosamente aceito (mesmo que de modo frio) por seu pai, “Rei” e Kaworu.
Shinji descobre que ele iniciou sem querer uma destruição maior da humanidade, a “Rei” que ele conheceu era um clone de substituição de pilotos e acha que obedecendo seu pai, cumprindo seu papel junto com Kaworu tudo irá voltar ao normal.
Não fica claro que Kaworu e Shinji tenham uma laço romântico-sexual, porém mostram cenas de Shinji se abrindo ao garoto e Kaworu o seduzindo, o famoso “olha, como apesar de nossas diferenças, combinamos” e a cena do piano em quatro mãos em que ambos entram em “sincronia com seus sentimentos na música”(Fanservice).
Não sei se o criador estudou mais psicanálise, mas parece que se aprofundou para dar mais fanservice e obrigado/de nada.
Há um claro fato que Shinji se abriu a Kaworu de forma emocional. Porém, em um plot twist, Kaworu se sacrifica para salvar Shinji, dizendo para ele ser diferente daquele fadado a repetir a história de dissecar a mente alheia e glorificar a morte. O que aliás, temos essa alusão na cena em que eles andam em cima de caveiras.
Meio bobo se virmos somente isso, mas calma, que ainda tem mais.
Shinji, resgatado por Asuka e agora no 4º filme lançado esse ano, encontra-se em um estado severo pós-trauma em catatonia, “Rei” os segue por não ter nada melhor para fazer e Asuka busca voltar ao seu quartel sem tentar ser a perfeita novamente, por desistência mediante fracassos depois de 14 anos.
Detalhe interessante explorado mais a fundo nessa série é sua historia, no surto psicótico de sua mãe, ela achava que sua filha era uma boneca e a filha orgânica, uma falsificação buscando substituir a “Asuka boneca”.
Após o suicídio de sua mãe Asuka nessa série conversa com a boneca sobre o seu self, o que ela pensa ou sentia, colocando ambas as personificações mãe, a si e amiga em um conjunto de autoanálise.
O filme é divido em 3 atos.
O primeiro é a análise da simplicidade e da paciência à saúde mental
Shinji catatônico em luto vendo o que sobrou do mundo que ele destruiu, mas ao invés da selvageria Mad Max, viu pessoas se ajudando aproveitando a vida como podem e em sociedade.
“Rei” acompanhava a rotina de uma pessoa comum, os laços com a maternidade, crianças e as coisas simples da vida. O que ela nunca teve já que é um clone, gostando disso, o comum, o banal, aquele dia a dia que achamos tedioso, mas amamos em conjunto porque desenvolvemos bem socialmente se um bom meio.
Asuka, teimosa como sempre, querendo ser a durona, esperando somente a próxima missão, ser brigão também é uma forma de desistência da vida. E no fundo preocupada com Shinji, sem saber como retirar ele da catatonia, inclusive forçando ele se alimentar, o agredindo verbalmente e fisicamente para um mínimo de reação. Ela falha miseravelmente.
Isso demonstra nossas dificuldades em novas experiências sendo elas boas ou ruins; e principalmente com a doença mental.
É fácil para o senso comum lidar com um doente mental com romance ou dar um socão na boca. Porém, nada disso resolve ou pode até piorar. E isso nesse filme é literalmente mostrado.
Shinji aos poucos recobra parte de sua mente quebrada, assim como o tempo com supervisão ajuda a cicatrizar feridas psiquiátricas e descobre que a “Rei” que estava com eles iria morrer em breve, mas ela sorriu agradecendo por mostrar o lado afetivo do ser humano e oportunidades de mudarmos nossa saúde mental surgem.
E então ele diz que gostaria de ir atrás de seu pai e descobrir respostas e de parar essa loucura que são esses dois últimos filmes.
O segundo ato consiste em umas lutas cheias de analogias a criação do mundo, concepção do universo que não compensa nessa crítica voltada a medicina tentar entender, só assistam e se divirtam.
Um adendo: Enquanto eles percorriam o limite do universo se preparando para a batalha final percorrendo os corredores da nave, Mari e Asuka conversam:
-Princesa? Por que você não vai ver o cachorrinho? Vocês seriam ótimos juntos. - Disse Mari
-Ele precisa é de uma mãe, não de uma namorada. - Retrucou a Colega
Asuka explica o que Shinji procurava em uma linha de mau humor. E isso é bem interessante, porque mostra a maturidade de uma personagem por mais racionalização que tenha nessa frase, errada ela não está.
Agora o terceiro ato seja talvez a parte mais bela de uma série que sem querer abordou o mais interessante em saúde mental.
O pai de Shinji conseguiu, ele se uniu ao EVA 013 como entidade perfeita e abriu um caminho para a instrumentalização humana, ou seja, novamente o conceito de mente coletiva, sem barreiras entre as pessoas.
Shinji tenta pará-lo antes que ele destrua o que sobrou do mundo por motivos que ninguém sabia até então.
Em um antiuniverso feito de memórias/um cenário de filme, Shinji luta contra seu pai fisicamente, o menino triste no EVA 01 e seu pai no EVA 013, um usando a lança da criação e outro da destruição (conceito de lanças vindas da origem do mundo do xintoísmo, belo toque).
A luta física em si era empatada, o mesmo pai disse que luta física era inútil nesse domínio e sobre quem tinha maior poder, porque não tinha maior poder.
Até esse ponto eu achava que seria a jornada do herói em que entraria um deus ex-machina e salvaria Shinji. O que foi feito em "the end of evangelion" e eu tenho minhas ressalvas.
Porém, começou o que talvez seja a melhor batalha final que já vi em um filme de ação, mangá ou anime.
Shinji desistiu da luta física, encarou seu pai na massa de mentes coletivas, ultrapassou a barreira mental de seu pai.
Se sentaram em um um ambiente confortável a ambos (vagão de trem) onde Shinji e seu pai em suas épocas se isolavam e o menino perguntou, “o que você sente?”
O pai de Shinji contou sua história ao filho, era solitário, triste, não gostava do contato com outras pessoas, se fechava em livros, no piano e se isolava a medida do necessário.
Até que ele encontrou Yui com quem ele viria a se abrir, ela corresponde e tem um filho, mas ele não entendia o que era ter um filho (já que os pais o abandonaram).
Yui morreu, duas mães morreram, a mãe da criança, a mulher de alguém que correspondia todas as necessidades que o pai não teve a vida toda.
Novidade que analista de saúde mental talvez não diga na internet: Provavelmente o pai era borderline ou personalidade de esquiva. E mais uma vez sem romantismo era um personagem doente mental e odiado por todo mundo.
Com a morte dela se sentia perdido, não podia mais voltar a ser o solitário mesmo que implorasse a si e achando que abandonando tudo, o filho, se envolver em relações superficiais enquanto tentava ser o centro da humanidade no projeto de instrumentalidade humana encontraria a única a quem ele realmente se sentiu vulnerável.
Materializar um delírio? Um sonho não correspondido? Morrer em um ambiente coletivo onírico? Não sei, somente assistam nesse ponto.
O que é interessante constatar é: Quantas vezes na medicina batemos de frente com um paciente verbalmente, moralmente e até fisicamente sendo que podemos resolver maioria dos problemas de conduta médica (seja adesão ou compreensão) com 5 segundos a mais de conversa com a atuação correta.
Shinji fez aquilo que acho que qualquer médico tem a obrigação de fazer, ele atingiu o centro de vulnerabilidade de onde surge o sofrimento, a patologia, e conversou sobre isso.
Shinji percorreu todos os caminhos possíveis no antiuniverso que entraram fundidos com o universo atual e como tal era tudo um set de filmes, mostrando a velha premissa do teatro grego que a vida é uma grande peça.
Viu Asuka criança chorando, querendo somente ter o carinho de alguém que a compreendesse, então a boneca Asuka assume isso, saindo dela Saji, seu amigo de escola, Shinji conta que a amava do jeito que ela era e os momentos dos dois juntos foram bons.
Juntou Kaworu e Kaji\Misato na mesma realidade para que ambos aprendam sobre o outro sobre laços familiares e emocionais para existir um mundo melhor.
E quanto a Rei original, segurando um boneco simbolizando a tentativa de maternidade(e a teoria de apego de Harlow invertida), quis um universo sem EVA, Anjos e destruição para seu filho de pano.
Não se sabe se era um universo individual, se todos morreram em uma parte, se era um só universo.
Isso fica a critério de quem assiste, na minha opinião essas mudanças vistas eram só uma perspectiva do mesmo universo que iriam se ajustar com o tempo.
Todos saíram felizes de seus status, não de forma curativa e perfeita e sim aceitando sua mente com maturidade e acompanhamento. E eu acho que aqui entra parte do “tratamento”.
O final mostra um Shinji mais amadurecido, sedutor, alegre e não precisando ter medo de mudar sua vida simbolizado pelo colar de explosivos ao redor de seu pescoço, removido por Mari.
E ambos saem explorando um novo mundo, as mesmas pessoas, com os mesmos problemas de sociedade, porém juntos.
E assim termina Evangelion, e pelo que descrevo é um final épico, não é todo o dia que se vê uma luta final sem agressão física, só psicológica e daquelas bem-feitas.
E como disse: Na medicina temos os princípios de comunicação médica, saúde mental e psicanálise em um desenho para criança. E a melhor luta final em um filme que na opinião deste que vos fala já viu.
Mas enquanto a Evangelion, na franquia, se este foi o final definitivo eles acertaram por mais que o tempo quase atrapalhe um final bom(to falando de você Kingdom hearts 3).
O que pode ser notado na personalidade do autor Hideaki Anno é que sempre foi lento, tinha fama de brigar com os sócios de estúdio e de ter muitos atrasos. Ele foi diagnosticado com depressão clínica. É lindo eu dizer que ele criou uma obra prima em detrimento de como pessoa ele ser um mala.
Uma forma das pessoas usarem seus problemas psíquicos para algo bom se chama sublimação:
-Um autor depressivo que faz uma obra prima sobre saúde mental
-Um estudante de medicina fisícamente agressivo que vira um cirurgião
-O médico que decide se afastar do paciente e decide se fechar como um patologista ou radiologista.
-Quem busca entrar na mente para se entender como um psiquiatra.
-Entre outros
Se curtiu, compartilha
Se não gostou e acha que eu estou romantizando um filme digital que era de acetato, comenta ai abaixo.
Só evitem romantizar doença mental, por favor.
Sayonara all the evangelion.
PS: O titúlo tem easter egg