Há mais de cem anos, a Associação Médica dos Estados Unidos criou um Conselho de Educação Médica (CME) para avaliar o nível das escolas médicas do país. Para tanto, Abraham Flexner foi convidado para fazer o famoso relatório, que mais tarde ficou conhecido como Relatório Flexner. Após dois anos de estudo, visitando todas as 155 escolas da época, o relatório foi lançado descrevendo as grandes disparidades na qualidade da educação médica. De acordo com Flexner, estava sendo formado grande número de profissionais “não educados e mal treinados”, devido principalmente ao excesso de escolas “comerciais” não vinculadas a uma universidade e que visavam apenas o lucro, com o ensino fundamentado apenas na base teórica.
A partir da divulgação desse relatório, muitas mudanças que já estavam em curso, passaram a se consolidar nos Estados Unidos. Mais da metade das faculdades inadequadas faliram ou simplesmente fecharam, e o ensino da medicina foi dividido em dois anos de educação pré-clínica, dedicados às disciplinas básicas como anatomia, fisiologia e patologia; seguido de dois anos para educação clínica, com a participação ativa do estudante (algo semelhante ao nosso internato). Também o ingresso à faculdade foi questionado. Segundo Flexner, cada estudante deveria ter pelo menos feito o ensino médio e ter concluído no mínimo dois anos no nível colegial. Bem como, a faculdade deveria funcionar vinculada a uma Universidade e sem fins lucrativos.
Assim como as recomendações de Flexner provocaram uma profunda mudança na estrutura dos cursos de medicina por todo o mundo. Hoje também com o surgimento de novas tecnologias e com a própria evolução do conhecimento médico, se faz necessário uma mudança no conteúdo do curso, com a integração de outros campos de estudo como ética, empreendedorismo, políticas de saúde pública, etc. Pensando nisso, grandes centros de excelência (como a Universidade da Pensylvania, Baylor College of Medicine e a Universidade de Duke), já vem reduzindo os dois primeiros anos de ensino básico para introdução desses outros conteúdos também muito importantes na prática diária do médico.
No Brasil, percebemos a tendência de algumas escolas na mudança do currículo: de tradicional (conhecido como modelo flexneriano - de fragmentação do saber) para o currículo integrado, em que há integração das disciplinas básicas e clínicas, contato precoce do estudante com o paciente, aulas mais objetivas e com maior participação do aluno na aprendizagem.
Ainda que essa mudança seja gradual, ainda há muito para evoluir. Com o surgimento crescente de novas tecnologias, a educação médica também deve se adaptar para a utilização cada vez maior dessas. Como por exemplo, o uso de aplicativos médicos, que podem até ajudar na adesão do paciente ao tratamento; ou a utilização de cursos online de grandes universidades, nos quais o acadêmico pode assistir tranquilamente em casa, com a possibilidade de assistir quantas vezes quiser, ou ir parando para fazer alguma anotação.
A Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, possui um moderno programa de laboratório digital, onde se promovem ações para a consolidação de novos modelos de aprendizagem com base na teleducação interativa. A transmissão das aulas é online, o que permite que os estudantes tenham acesso a elas de qualquer lugar da faculdade, utilizando dispositivos móveis. Outra ação interessante é o projeto Nuvem do conhecimento, portal provido e mantido pela Disciplina de Telemedicina do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, no qual uma equipe especializada em educação em saúde produz vídeos com objetivos educacionais. Eles utilizam, dentre outras categorias, as imagens do Projeto Homem Virtual que explicam tridimensionalmente a anatomia e os processos fisiopatológicos do corpo humano.
No Instituto do Coração (InCor) em São Paulo, os residentes receberam iPads com aplicativos como o “Up To Date”, que traz as novidades nos tratamentos. Na Universidade de Chicago (EUA), uma pesquisa com 115 residentes revelou que 90% usam tablets frequentemente nas consultas e 78% acreditam que a tecnologia os tornam mais eficientes.
Além disso, com o avanço da ciência, principalmente da genética, é bem provável que daqui a algumas décadas, encontremos as respostas para muitas doenças que ainda não temos hoje. Portanto, o futuro da educação médica tende a ser imerso em muita tecnologia, com incorporação de novos métodos de ensino, bem como a introdução de novos campos de estudo (como ética e empreendedorismo) auxiliando desde o processo-aprendizagem do acadêmico até na prática diária do médico.
Porém, devemos ter cuidado para que isso não substitua o contato pessoal com o docente e não nos distancie do paciente real, sobretudo durante a vida acadêmica. De acordo com a médica e docente do Departamento de Clínica Médica da UEL, Dra. Érika Mimura:
“O tecnológico não pode substituir o humano. Tudo bem se eu der uma aula pessoalmente e essa aula estiver disponível online depois para vocês, mas nada substitui o contato pessoal. O paciente não vai te ligar e dizer que está sentindo ‘isso’, pra que você dê o diagnóstico online, não dá para fazer uma consulta online. Além disso, precisamos investir mais no ensino, investir mais no professor”.
Assim como há cem anos, houve uma profunda mudança no ensino da medicina, pela inclusão dos dois anos de prática no internato, no futuro, teremos que cuidar para que isso também não se perca em meio ao mundo virtual. Mesmo daqui a 10 ou 20 anos, devemos nos aliar e fazer bom uso das novas ferramentas, mas não deixar que isso substitua o bom e velho “aperto de mão”. Afinal, medicina só se aprende com a prática, e não tem como consultar e examinar online.
E pra você, como será a faculdade de medicina daqui a dez anos?
Veja também:
*Ana Carolina Azevedo Salem publicou este texto em 2014, enquanto era discente do 3º ano do curso de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Londrina
Fontes: KevinMD e IstoÉ
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