Parte I: O homem sem subclávia (clique aqui para ler)
Parte II: Parafasia (clique aqui para ler)
[...]
Parte III: A morte do Superman
Não pudia me aproximar demais. Leonardo soltava as mãos e nossa conversa estaria acabada para sempre. Tentei acalmá-lo, quando, na verdade, estava angustiado pela possibilidade dele se jogar do prédio. Contive a tensão. Respirando fundo, disse:
– Meu jovem. Não faça isso! Acalme-se.
– Por que não, Doutor? Acho que já fui bem claro ao senhor. Não permitirei que minha vida seja assim.
– Eu aceito isso Leonardo – no tom mais calmo que pude – você não pode viver sendo outra pessoa. Ainda mais alguém tão cheio de afeto e qualidades. Mas há outra ponto que também não podemos aceitar.
– E qual é?
– Você se jogar e acabar com sua vida. Isso é inaceitável meu jovem! Escolher que não tem saída não pode ser a saída.
– O senhor mesmo disse que não há cura para o meu mal.
– Bem... Posso estar errado, não? Além do mais, sou seu médico mas não prevejo o futuro. A decisão é sua, sempre será, mas perceba, meu caro, existe um erro grave em você se atirar da janela.
– E qual seria esse erro?
– Você que deve me responder, Leonardo. Mas eu lhe ajudarei.
– Então faça!
– Diga-me: qual é o prédio mais alto a sua frente?
– O que isso tem a ver com a minha situação?
– Tudo. Apenas responda.
– Bem... Acho que é o com as paredes de vidro. À direita. Deve ter uns 20 andares.
– Errado!
– Como?
– O prédio mais alto a sua frente tem 828 metros. Essa é a resposta correta.
– Essa é alguma espécia de piada, Doutor? Esse prédio tem no máximo 60 m.
– De maneira alguma! O prédio mais alto a sua frente chama-se Burj Khalifa e tem 828 metros. Fica logo a sua frente, nos Emirados Árabes e é, apropósito, o edifício mais alto do mundo.
– ...Ok, Doutor. O senhor me pegou nessa. Mas onde isso dá?
– Veja bem meu rapaz, eu perguntei qual o prédio mais alto na sua frente. Perceba, existiu uma limitação na sua resposta, eu não perguntei o prédio mais alto que você poderia ver, e sim o mais alto na sua frente. Você não poderia vê-lo, é claro. Não poderia, pois na frente da sua cabeça não se encontram telescópios, e sim, olhos. Todavia, é deles que você dispõe. Tudo bem, nossos olhos são assim. Os de todo mundo são. Limitados. A sabedoria vem em saber que não é porque as coisas que vemos são as maiores que vimos que, de fato, são as maiores que existem. Pense, meu amigo, e se estiver errado? Duvido que não considere essa opção como possível. Olhe bem rapaz, como pensar no que não foi pensado ainda? Por mais que você reflita, aquilo que não foi pensado só virá depois. Não antes. Os cientistas mais brilhantes do passado, veja só, não conseguiram fazer coisas tão simples como pipoca no microondas. Para isso, outros tiverem que vir depois e continuar pensando, dando prosseguimento ao caminho. Primeiro o experimentalismo, depois o cálculo, teorias, eletromagnetismo, energia elétrica, ondas de calor. Só séculos depois veio a pipoca. Por mais que Newton tivesse sido um gênio e pensado até a exaustão, ele jamais sairia quase do zero para um forno de microondas. Não se pode parar porque não conseguimos passar por um muro em nosso caminho. Se dá a volta! A terra é redonda pra isso. Se não podemos ultrapassar um muro, demos meia volta e percorremos todo o equador até chegar pelo outro lado. Qual o sentido de apostar contra você?
– Não sei, Doutor.
– Pense rapaz. Você não saberá o que vai acontecer caso se jogue daí. E eu te pergunto, é certeza que sua vida será a total desgraça que imagina?
– Claro que sim, Doutor. Como alguém poderia viver com o fardo de ser um monstro?
– Outro erro que cometes! Você vê um monstro. Eu vejo uma limitação, Leonardo. Apenas uma impossibilidade. Veja novamente: não podemos pensar o que não foi pensado, meu rapaz.
– O senhor disse que não há cura. Disse que meu corpo caloso é que faz minhas metades se alinharem e que, sem ele, não há harmonia possível. Viverei em conflito.
– Vamos além disso, Leonardo. Em desespero, resolvi tentar uma última carta . E se eu lhe disser que você pode conectá-las novamente? Uma por uma, não pela via original, e sim por outras. Desvios fabricados. Como trilhas. Muitas trilhas! Somando-se até que a trilha torna-se tão evidente que se comporte como uma estrada. Uma rodovia. E mais outra. Levaria anos, mas... Parece-me possível. Chama-se neuroplasticidade. Já ouviu falar?
– O senhor acha?
– Por que não tentar? Acredito que você destruiu o que era a conexão entre os seus cérebros. Mas, mesmo sendo uma estrutura tão nobre, pode se adaptar. Como áreas que tomam a função de outras em AVC’s. É justo pensar que ele pode adaptar-se também no seu caso.
Leonardo olhou uma última vez para baixo. Dessa vez, acho que sentiu medo por pensar em fazer aquilo. Finalmente, consegui fisgá-lo! Descera da janela. Sem perder o gancho, convidei-o a sentar novamente colocando minha mão amigavelmente sobre seu ombro.
– Ok, Doutor. E como faço isso?
– Diga-me você, Leonardo. O que fez para seu corpo caloso desaparecer?
– E eu sei? Até poucas horas atrás nem sabia que tinha um corpo caloso.
– Tudo bem. Vamos em frente. Fale-me mais sobre você.
– Bem, julgava-me um rapaz direito. De conversa fácil.
– Percebi isso em nosso primeiro encontro nitidamente. E em seus relatos. Mas o que lhe incomodava?
– Nada! A conversa sempre fluia bem. Era agradável para mim e para os outros. Equilibrado, sabe? Eu penso que... Bem... Talvez exagerasse um pouco...
– Em que está pensando?
– Não sei se é errado dizer isso, mas acho que eu cedia demais. O senhor não acha?
– O que você acha? Eu achava que sim.
– Penso que sim. Eu não lembro da última vez em que descordei de alguém. Que me impus sobre algo que gostava. Que defendi meus interesses. Que deixei de ajudar alguém. Em realidade, deixei muita coisa minha de lado por outras pessoas. Mas eu tentava fazer a coisa certa, isso era errado? Pensar nos outros. Não machucar ninguém.
– Acho que não se trata de certo ou errado. E sim um pouco exagerado. Diria insustentável, meu rapaz. Responda-me algo: você não se importava com isso? Parece-me bem cansativo ser um homem tão agradável assim.
– Eu fico sempre feliz de ajudar, de ser uma boa companhia. Para não dizer que eu não me importava, eu sentia um pouco de sono. Na verdade, muito sono! As vezes achava que iria despencar no chão de repente. Disfarçava bem, sabe? Mas a verdade é que em muitos momentos eu olhava fixamente na pessoa que falava e apenas pensava: meu Deus! Como gostaria de estar dormindo. Mas não demonstrava isso. De maneira alguma.
– Aí está algo interessante. Isso ocorria sempre?
– Frequentemente. Como disse, gosto de interagir com outras pessoas. E nem todo mundo era interessante assim. Meu Deus! Acho que é a primeira vez que digo isso. Minha nossa! Mas... Eu sei que não é de bom tom dizer isso. Por Deus! Como eu conversei com gente chata, inconveniente, sem graça. Pé-no-saco mesmo! E para quê? Por que querer agradá-los tanto assim? E quem me agradava? Ser amável vinha com facilidade, acho que as pessoas pensavam. Mas não! QUE SE DANE OS OUTROS! Eu não aguentava certas pessoas, Doutor! As vezes queria sair correndo e deixá-las sozinhas. Pelo amor de Deus, Doutorr, responda-me: é errado pensar nisso?
– É humano pensar isso, Leonardo.
– É, eu acho que eu não sou o Superman. Dando um longo suspiro, aliviado.
Eu sorri ao ouvi-lo dizer essas palavras. Talvez fosse um começo.
– O que você acha de continuar essa conversa na cafeteria lá em baixo, Leonardo.
– Acho ótimo. Mas sem consessões. O senhor terá que me ouvir do jeito que sou.
– Claro que sim rapaz! Não iria querer de outra maneira.
E descemos. Fomos até a cafeteria. Conversamos por algumas horas aquela tarde. Vi um homem diferente nesse tempo. Ele reclamou, coisa que aliviado, disse nunca ter feito. Falou-me do que gostava e, principalmente, do que não gostava. Existia um bocado de coisas que não gostava! Diferente do que aconteceria com outras pessoas, ouvi-o reclamar com satisfação. Falou-me das pessoas do seu trabalho, sempre o enchendo de tarefas que não era sua responsabilidade. Das patalhufas que ouvia nos encontros amorosos que tivera. Da avó que só sujava e nunca lavava a louça e da irmã e aqueles malditos gatos! E com muito prazer fez isso.
Eu não sabia se seu cérebro iria fazer o que eu disse que iria. Não tinha certeza se um novo corpo caloso poderia crescer. Disse isso com sinceridade, mas, essencialmente, queria tirá-lo daquela janela, permitindo que continuássemos a conversar de uma maneira menos drástica. Talvez seu corpo caloso volte a crescer. Talvez não. Quem sabe, tudo o que eu falei não fosse mentira? Não menti a ele. Disse o que fazia sentido para mim. Salvei-o de acabar com a própria vida. Certa vez, lembro-me de ter lido sobre uma mulher na China sem cerebelo. Com sintomas apenas de um leve desequilíbrio. Um absurdo também! Como ela vivia era um mistério da natureza, igualzinho a Leonardo. Essa mulher não precisou saber a resposta para continuar a viver, precisou saber de outras coisas. Existiam coisas mais importantes do que “Por que estou viva?”. Ao final da nossa conversa, a despeito da descarga de reclamações e defeitos que me apresentava a cada história, vi em Leonardo um excelente rapaz! Cheio de energia, criativo, amoroso e empático. De fato, um ser humano incrível. Incrível e possível.
Despedimos às 18:30 de uma terça-feira, o dia que habitualmente reservo para minhas consultas. Tive que remarcar os outros pacientes pois todo o dia fora de Leonardo. Nos encontraríamos de novo, é claro. Naquele dia, apoiado na janela do 15º andar do meu prédio, consegui dar continuidade a uma vida. Orgulho-me disso! Leonardo desceu do parapeito do consultório e aceitou conversar comigo. Aceitando que ele não era perfeito. Deixando o Superman sair pela janela. Ele não morreu, claro. O Superman sabe voar. E nada mais justo para um alienígena. Deve ter voado para casa, Krypton, um lugar bem diferente da terra. Foi para sua terra natal, onde habitam alienígenas, seres perfeitos e outras mentiras do tipo.
FIM.
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