No dia 29 de janeiro é comemorado o Dia Internacional da
Visibilidade Trans. A data tem como objetivo promover a sensibilização da sociedade
por mais conhecimento sobre as identidades de gênero, com o intuito de combater
os estigmas e a violência sofridos pela população trans e reiterar os direitos
dessa população.
O termo trans, inclusive, abarca um grande número de
identidades: travestis, mulheres e homens transgêneros, pessoas intersexo, pessoas
não-binárias, entre outras, e é um termo que busca valorizar todos os
atravessamentos que se dão dentro da interseccionalidade da letra T, da famosa
sigla LBTQIA+.
Aproximadamente 2% da população adulta brasileira (cerca de
4 milhões de pessoas), se identificam como transgênero e não binárias. A
legislação brasileira, em seu Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016 - que
dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de
travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional - representa um esforço teórico no sentido de
acolhimento desta população. No entanto, sabemos que na prática a realidade é
ainda bastante distante.
Lembro-me muito bem da primeira paciente trans que atendi
enquanto acadêmica de Medicina. Era uma quinta-feira, final de tarde, durante
um plantão no pronto socorro. A paciente Letícia chegou trazida por uma
ambulância do SAMU, vítima de agressão corporal. Em seus documentos, constava
ainda o nome Pedro. Letícia havia sofrido diversas lesões nos membros, abdome,
seios e rosto. Era uma mulher trans que havia sido agredida pelo
simples fato de ser Letícia e não mais Pedro.
No Brasil, de acordo com dados da ANTRA (Associação
Nacional de Travestis e Transexuais), pessoas trans têm expectativa
de vida de cerca de 35 anos – menos da metade da população brasileira em geral.
Pelo 12º ano consecutivo, o Brasil se encontra no topo do ranking mundial como
o país que mais mata pessoas trans, em especial travestis e mulheres trans.
Além de toda a violência, preconceito e exclusão que sofrem
desde que se assumem (sendo expulsas cedo de casa, tendo dificuldades no acesso
à educação e à colocação no mercado de trabalho, acabando por muitas vezes a
encontrar na prostituição uma forma de subsistência), as pessoas trans têm
maior exposição a uma série de doenças, inclusive ISTs (infecções sexualmente
transmissíveis) e são muito mais propensas a desordens de saúde mental. Elas apresentam índices de tentativa de suicídio em torno de 43%, sendo que na
população em geral este valor é de cerca de 3,7%.
Vale destacar que apenas em maio de 2019, durante a 72ª
Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, a transexualidade deixou
oficialmente de ser considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), depois de ter sido por 28 anos mantida como transtorno mental na
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID). Pela
nova edição (CID 11), a transexualidade passa a integrar agora a categoria de
“condições relacionadas à saúde sexual”, sendo classificada como “incongruência
de gênero”: um sentimento de profunda angústia devido ao conflito entre a
identidade da pessoa e o gênero a ela atribuído no nascimento.
Ainda tratando especificamente do papel da Medicina no
atendimento a estas pessoas, cabe lembrar da Política Nacional de Saúde Integral
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pela
Portaria nº 2.836, de dezembro de 2011, que possui o objetivo geral de promover
a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito
institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para a
consolidação do SUS como sistema universal, equitativo e integral.
O processo transexualizador representa mais uma vitória
para a população trans e travesti, instituído pelas Portarias nº 1.707 e nº 457,
de agosto de 2008, que garantem o acesso a procedimentos como terapias hormonais
(hormonização), acompanhamento multiprofissional e a cirurgias de modificação
corporal e genital. O atendimento é composto pela atenção básica, que
representa a porta de entrada ao sistema de saúde e realiza avaliações médicas
e encaminhamentos; e pela atenção especializada, que pode ser ambulatorial, com
acompanhamento psicoterápico e hormonioterapia e hospitalar, para a realização
das operações.
Hoje, no Brasil, existem cinco hospitais habilitados a
realizar cirurgias de transgenitalização pelo SUS, cerca de seis ambulatórios
do SUS e 22 ambulatórios das redes de saúde estaduais. Para que um paciente possa
iniciar o processo transexualizador, deve ter mais de 18 anos para poder
iniciar a hormonioterapia e mais de 21 para as cirurgias de redesignação sexual.
Ainda, o paciente deve ter passado por avaliações psicológicas e psiquiátricas
durante um período de pelo menos dois anos.
Embora muitos avanços tenham ocorrido, lembro-me claramente
do rosto quase desfigurado de Letícia. Quantas Letícias não devem chegar aos
prontos-socorros deste nosso Brasil e serem maltratadas, humilhadas e negligenciadas
por profissionais de saúde? Sabemos que a ignorância humana pode ser infinita
e os ambientes de saúde não estão ilesos. Temos um longo caminho a percorrer, sendo que
este caminho começa na educação. Para começo de conversa, a temática do
atendimento à população trans deve estar presente nas disciplinas obrigatórias
das universidades.
Os sistemas de saúde devem estar preparados para atender
pessoas trans de forma digna, respeitosa e científica. É urgente reconhecer que
estes pacientes têm demandas específicas, como homens com útero e mulheres com
próstata, realidade frequentemente ignorada pelo SUS e pelos planos de saúde.
Mais ainda, é preciso reconhecer que existem pessoas que menstruam e que
gestam, para além das normas da cisgeneridade. Precisamos agir na prevenção de
enfermidades de corpo, mente e alma, e garantir o acesso à saúde plena destas
pessoas, as respeitando e acolhendo. Muitas conquistas foram feitas, mas ainda
temos um longo caminho a percorrer.
Leia também:
- Aspectos básicos para o atendimento da população LGBTQIA+
- Crianças que não se identificam com o próprio gênero entram na puberdade mais cedo