Em um cenário caótico da abertura desenfreada de escolas médicas nos últimos anos, muitas delas sem qualidade, tivemos uma ascensão geográfica principalmente pelo pacote do programa Mais Médicos, criado em 2013 pelo governo Dilma, cujos objetivos sumariamente residiam em suprir a carência de médicos e fixá-los no interior.
Dentro desse panorama, somamos e mais do que dobramos a meta: o número invejável aos olhos estatísticos e midiáticos de 304 escolas médicas, superando países como China e Índia. Assumimos a liderança mundial nesse quesito cuja consequência imediata é o aumentado da precariedade do ensino. Serão infladas no mercado 35 mil novas vagas anuais em uma perspectiva desfavorável para a profissão cerceada pelo lobby financeiro e político. Não podemos esquecer dos milhares de estudantes brasileiros espalhados pelos diversos países, principalmente da América Latina, segundo algumas fontes, cerca de 60 mil brasileiros cursando medicina no exterior, só na Bolívia 25 mil.
Sem dúvidas encontraram uma mina de ouro e não vão parar de explorá-la até o desgaste total. Naturalmente, uma parte significativa dessas novas escolas, fundadas em locais sem estrutura e sem necessidade, foram movidas por interesses, não de boa fé, mas pelas ascensões políticas. Sobremaneira, uma briga de leões, pois aquele velho ditado perdura: “faculdade de Medicina dá voto”.
Dentro dessa conjuntura, o governo brasileiro assolou as entidades médicas e concomitantemente disparava falácias sobre a efetividade do programa Mais Médicos, com o discurso travestido de heroísmo para dar soluções para a saúde brasileira, manobrando dados estatísticos e explorando tais situações de forma midiática.
Dessa forma, objetiva angariar respaldo e consequentemente aumentar apoio popular para próxima eleição, bem como toda a circunstância dos vetos feitos pela presidente à Lei nº 12.842/13, também conhecida como Lei do Ato Médico. Sem dúvidas, foi um ano impactante para a classe médica e gerou profundas reflexões sobre o caminho que iríamos seguir.
Todavia, várias propostas foram aventadas para amenizar impactos tão profundos na formação de novos médicos, diante de estratégias governamentais tão equivocadas. Certamente, uma das ideias que foram implantadas parcialmente foi a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM), instituída pela Portaria MEC nº 982, de 25 de agosto de 2016. Ela tem como objetivo avaliar os estudantes de graduação em Medicina, do 2º, 4º e 6º anos, por meio de instrumentos e métodos que considerem os conhecimentos, as habilidades e as atitudes previstas nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, promovendo um acompanhamento individual do acadêmico e fornecendo dados institucionais, mas sem caráter punitivo.
A discussão tornou-se, não obstante, mais acirrada recentemente pelo projeto de Lei n° 165/2017 que dispõe sobre o exame de proficiência em Medicina, de autoria do senador Pedro Chaves e com os senadores relatores Ronaldo Caiado e Otto Alencar. As implicações são severas e novamente nos parece que optar pelo caminho mais simples representava a melhor opção. Os argumentos são numerosos e a comparação com o exame de ordem feito pela OAB é inexorável. Tal projeto, possivelmente, angariado por apoio popular e utilizado também com o viés político, suscita a imagem de que o Conselho Federal de Medicina (CFM), bem como a Associação Médica Brasileira (AMB) estão cumprindo o seu papel perante a sociedade como zeladores da saúde. Certamente, é uma visão reducionista sobre a complexidade da profissão. Confrontando com o curso de Direito, em que temos mais de 1.200 escolas somente no Brasil, em comparação a 1.100 no resto do mundo, o resultado final é bem claro.
Isso é notadamente uma cascata sem fim. Acreditarmos que esse filtro final é o caminho. Enquanto isso, entidades enriquecem seus cofres sob a alegação de uma prova como crivo na seleção dos profissionais para o mercado. Seguiremos esse mesmo caminho, mesmo com realidades tão distintas, com opções, posteriormente como egressos, dentro do mercado de trabalho tão variadas entre o curso de Direito e o o curso de Medicina? São realidades completamente distintas. Nesse mar de confusões, uma medida benéfica, embora ainda atenuante, foi a moratória de 5 anos perpetrada pelo Ministro da Educação para a não abertura de novas escolas médicas.
Diante dessa medida, podemos lavar as mãos em demasiadas situações. Indubitavelmente, deixaremos as portas abertas à explosão de novos cursos, à precariedade do ensino, à escalada de cursos preparatórios para o exame, aos critérios falhos e brandos alterados mediante intenções políticas por parte do Ministério de Educação e Cultura, bem como dos Conselhos de Educação, assim como fiscalização insuficiente e inadequada. Qual será o interesse desses órgãos na rigorosidade e acompanhamento da qualidade dessas instituições dentro da graduação? Seguramente, mesmo sabendo de instituições tão precárias, raramente ou talvez nunca, a não ser por motivações financeiras, presenciamos o fechamento de uma escola ou redução de vagas. É um caminho sem fim; sem volta.
Portanto, há a necessidade de um diálogo mais aprofundado e integrado abrangendo inúmeras variáveis envolvendo a graduação médica. A ideia do ANASEM, que seguramente deve ser mais revisada e com o estabelecimento de critérios mínimos, constitui como uma das ferramentas viáveis de acompanhamento da qualidade na graduação, já que a responsabilização é compartilhada tanto pelos estudantes como pelos órgãos reguladores, incluindo a participação das entidades médicas dentro de tais parâmetros, como acreditadores das escolas junto ao MEC.
Com dados reais, sistematizados e com uma análise concreta, podemos estabelecer medidas que de fato produzirão impacto na formação de bons médicos e pregarmos rigorosidade, bem como as punições, tanto no fechamento, como em redução das vagas nas instituições que não atingirem os critérios mínimos.
Ademais, ainda há o excedente de discutirmos a incorporação de novos conteúdos dentro da grade curricular na graduação. Inegavelmente, em meio há tantos problemas envolvendo a saúde brasileira, péssimos salários, condições precárias de trabalho, a esmagadora pressão do Estado e da população, a carga horária excessiva, o alto índice de suicídios e de Burnout e uma imensa listagem de obstáculos, ainda opta-se pelo caminho mais fácil. Precisamos refletir sobre qual estrada iremos trilhar.