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Gabinete de Curiosidades Médicas: Céline, medicina e o abismo do ódio

Gabinete de Curiosidades Médicas: Céline, medicina e o abismo do ódio
Jocê Rodrigues
set. 3 - 6 min de leitura
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Bem-vindos à série "Gabinete de Curiosidades Médicas"! Aqui você vai encontrar fatos curiosos, sombrios ou interessantes sobre a história da medicina e das artes. Prepare-se para um encontro inesperado com médicos, escultores, pintores, filósofos que se unem para contar um pouco das inusitadas intersecções, costuras e remendos entre ciência, medicina e literatura no Século XIX.

Vamos lá?

Literatura e Medicina são dois rios muito próximos. Correm um ao lado do outro e por vezes seus braços chegam a se cruzar, formando uma só correnteza. O resultado desse encontro pode ser um fenômeno de imaginação, de perdão e de amor. 

Em 2011, o grande crítico literário e professor George Steiner recebeu em sua casa, em Cambridge, o escritor, psiquiatra e constante aposta ao Nobel de Literatura, António Lobo Antunes. Durante o diálogo, Steiner falou sobre como há um gesto de perdão concedido ao homem nas obras do escritor e médico Anton Tchekhov, considerado por ele como um mestre do perdão. Atitude que, de alguma forma estaria ligada à formação médica do dramaturgo russo. Em contrapartida, existem também aqueles que, mesmo com o mesmo tipo de formação, são grandes mestres do ódio. E, dentre eles, o primeiro nome a ser lembrado é o de Céline.

No final da década de 1930, Louis-Ferdinand Céline (pseudônimo usado por Louis-Ferdinand Destouches) deu início à sua derrocada. Consagrado como um escritor por livros como Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito, publicados na mesma década, ele era aclamado por toda uma geração, incluindo Henry Miller, que disse ter escrito seu famoso Trópico de Câncer após ler Céline.

Mas então, uma coisa aconteceu. Algo que curiosamente acontece em governos autoritários, quando o afrouxamento da democracia cria espaço para a proliferação e manifestação de preconceito, ódio e da estupidez humana. Com o fortalecimento do regime nazista, Céline se sentiu cada vez mais confortável para expressar opiniões controversas e de teor racista e xenofóbico. Não só isso. Escreveu uma série de três panfletos infames sobre os judeus e passou a colaborar com o Terceiro Reich, escrevendo para publicações nas quais incitava abertamente o ódio racial.

Quando as tropas aliadas atingiram a Normandia em 1944, Céline ouve boatos de que seria executado pela Resistência Francesa e escapa para a Dinamarca com a ajuda de seus colaboradores. A fuga corre bem por um tempo, até que ele é preso e encarcerado por um ano e meio em Copenhagen e é finalmente julgado e declarado culpado em seu país Natal em 1950, para o qual retorna para cumprir uma pena branda de um ano de reclusão após ter metade de seus bens confiscados.

Apesar dessa fase conturbada e justamente condenável, a vida pregressa de Céline tinha tudo para levá-lo por outros caminhos. Ele era médico de formação, havia estudado medicina em Rennes e em Paris entre os anos de 1921 e 1924. Em 1918, ela havia se juntado à American Commission for Preservation Against Tuberculosis (comumente conhecida como Missão Rockfeller) para dar conferências à população sobre a importância da higiene básica na Inglaterra. Anos depois, trabalhou na Comissão de Higiene da Liga das Nações (Société des Nations) e fez uma grande viagem para Cuba, Estados Unidos e Itália em 1925 para estudar os surtos de malária que continuavam a acontecer nessas regiões. Como resultado dessas incursões, ele publica em 1926 o livro La quinine en therapeutique e parte para uma nova missão, dessa vez na África Ocidental.

Curiosamente, a tese de doutorado de Céline foi sobre o trabalho de Ignaz Philip Semmelweis, um médico de origem húngara do século XIX que, ao contrário do que o escritor francês passou a defender mais tarde, acreditava que toda a vida deveria ser preservada. 

Preocupado com o avantajado número de mortes por infecção após o parto de mulheres no Hospital Geral de Viena (quase 20%), ele defendia a ideia de que essas mortes não eram causadas por questões relacionadas ao tamanho ou iluminação das clínicas obstétricas da instituição. Essa taxa era na verdade devida às infecções por contágio manual, já que os médicos e internos não se davam ao trabalho de lavar as mãos após efetuarem autópsias e, em seguida, examinarem as pobres parturientes.

Mesmo abandonado e desacreditado por seus colegas, que ainda teriam que esperar pela revolução bacteriológica de Pasteur para confirmar suas hipóteses, Semmelweis não desistiu da sua luta e foi até mesmo considerado louco e internado por conta delas (Leia mais sobre ele aqui). Encarou até as últimas consequências sua crença de que era preciso salvar vidas ao invés de condená-las. 

O desvio de Céline de um humanismo médico em direção a um niilismo e pessimismo cortantes, indica que é preciso persistência e coragem para não cair nas armadilhas da profissão. Aqui, vale o famoso aviso de Nietzsche sobre o cuidado de não nos tornarmos os monstros contra os quais lutamos. No entanto, nem sempre o abismo olha de volta para você. Às vezes, a exemplo de Tchekov e Semmelweis, é preciso encarar o abismo para saber como não cair nele.

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