Em tempos de crises sanitárias sem precedentes, como a pandemia de Covid-19, a narrativa em torno dos profissionais de saúde elevou ao status de heróis inabaláveis, prontos para enfrentar qualquer adversidade sem hesitar. Entretanto, um artigo publicado no Human Resources for Health em 20 de fevereiro de 2024, destaca as implicações negativas dessa idealização, enfatizando a necessidade de reconhecer e aceitar a vulnerabilidade inerente a esses profissionais.
Entre janeiro de 2020 e maio de 2021, aproximadamente 115.500 profissionais de saúde perderam suas vidas, não apenas devido ao contágio pelo coronavírus, mas também em consequência do estresse individual e ocupacional exacerbado pelas condições de trabalho durante a pandemia. Segundo a publicação, esses números refletem a falha dos governos internacionais e lideranças na saúde em priorizar a segurança e o bem-estar desses trabalhadores, expondo-os a condições extremamente adversas sem o devido reforço de recursos físicos e humanos.
O artigo, reflete sobre a "super-heroificação" dos profissionais de saúde, que embora possa parecer um reconhecimento positivo, carrega um efeito adverso significativo. Ao serem vistos como super-humanos, diminui-se a percepção de suas capacidades de sentirem dor e sofrimento, justificando a negligência de suas necessidades de apoio e cuidado. O estudo argumenta que essa falha em reconhecer a dor alheia diminui a empatia e justifica a recusa em oferecer ajuda quando mais necessária.
A estigmatização do esgotamento profissional (burnout) entre os trabalhadores da saúde é um dos problemas críticos apontados. O silêncio e o isolamento, gerados pelo medo de serem estigmatizados ao expressarem qualquer sinal de fragilidade ou exaustão, apenas agravam a situação. A cultura médica de auto-suficiência e sacrifício pessoal reforça essa estigmatização, desencorajando os profissionais de buscar ajuda e apoio.
Diante dessa realidade, o artigo propõe uma mudança de paradigma: a aceitação da vulnerabilidade como um aspecto fundamental da identidade profissional dos trabalhadores da saúde. Reconhecer a vulnerabilidade não apenas como uma característica humana, mas também como um componente intrínseco à profissão, pode pavimentar o caminho para estratégias preventivas mais eficazes no nível organizacional.
Para combater o estigma relacionado ao burnout e promover um ambiente de trabalho mais saudável, o estudo sugere várias medidas de ação. Entre elas, destaca-se a importância de normalizar a vulnerabilidade , concebendo-a como uma resposta natural e adaptativa às condições de trabalho, em vez de um sinal de doença mental. Adicionalmente, propõe-se uma mudança de foco, do problema individual para a realidade social complexa, reconhecendo os estressores emocionais como riscos ocupacionais e não apenas como problemas de saúde mental.
A construção de conexões sociais mais fortes, que permitam o compartilhamento de emoções e experiências entre os profissionais, é enfatizada como um elemento chave para reduzir as barreiras ao envolvimento em intervenções de apoio. Além disso, ressalta-se a necessidade de um compromisso inabalável e resistente das instituições de saúde em apoiar seus trabalhadores, criando um clima organizacional positivo que acolha e apoie a vulnerabilidade.
Em conclusão, o artigo se expressa como um apelo para uma mudança cultural, da visão de super-heróis para uma de seres humanos vulneráveis que também precisam de cuidado e compaixão. Enfrentar o burnout como um problema estrutural exige a criação de uma identidade profissional baseada na humanidade do pessoal da saúde, promovendo práticas de cuidado e apoio mútuo dentro das organizações de saúde. Ao abraçar a vulnerabilidade como um traço valioso da natureza humana, podemos tornar-nos cuidadores mais empáticos e eficazes.
Referência:
Morera, D., Delgado, J., Lorenzo, E. et al. “Superheroes? No, thanks.” Accepting vulnerability in healthcare professionals. Hum Resour Health 22, 16 (2024). https://doi.org/10.1186/s12960-024-00899-9