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Já tá tudo na nuvem! Sobre Epidemias e Miasmas

Já tá tudo na nuvem! Sobre Epidemias e Miasmas
Áureo Lustosa Guérios
jun. 29 - 18 min de leitura
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Transcrição ep #2 do podcast Literatura Viral

INTRODUÇÃO E RESUMO DA TEORIA DOS HUMORES - 00:00 a 03:50

Olá, meu querido e minha querida, meu nome é Áureo e esse é o Literatura Viral o podcast em que eu discuto literatura, doenças e epidemias. Da vez passada a gente falou sobre dois personagens Ötzi, que poderia ser chamado de talvez o médico dos Flinstones. E o Hipócrates o pai da medicina grega que é um cara bem-humorado. Quem ouviu o episódio vai entender a piadinha. Hoje então estamos preparados para começar a falar de contágio e epidemias. Simbora!

No episódio anterior eu contei a história de como Ötzi cinco mil anos atrás no momento em que ele estava prestes a desfalecer e cair dentro de uma poça de lama que o conservou até os dias de hoje, ele trazia consigo um pacote que revela muita coisa sobre a história da medicina. Depois eu também comentei sobre as teorias criadas pelo Hipócrates no século IV antes da era comum que tiveram uma sobrevida muito grande e chegaram até muito recentemente, até mais ou menos 1860, 1880. Essa teoria é teoria dos humores e postula que existiriam quatro substâncias dentro do corpo humano, produzidas em regiões diferentes por órgãos diferentes. O sistema é razoavelmente complexo, eu só pude arranhar a superfície. Mas o que interessa para gente é que enquanto essas substâncias estão em equilíbrio segundo Hipócrates, isso explica que a pessoa estava em um estado saudável. Então a pessoa tem saúde enquanto os quatro humores que o corpo dela produz estão harmonizados. A partir do momento em que algum deles passa a prevalecer sobre os outros, a pessoa começa a manifestar sintomas, que podem ser os mais diversos, e isso isso faz com que ela a doença.
Então então toda doença no fundinho, lá quando a gente vai garimpar, é sempre causada por um único motivo. E esse motivo é sempre uma desarmonia dos humores. Eu também enfatizei bastante que essa teoria, uma consequência dela, é que ela pode servir para explicar certos traços da índole de cada um, do caráter, das vocações, de cada um e também do comportamento porque uma pessoa mais artística, uma pessoa mais melancólica, mais circunspecta, mais alegre, eufórica, todos esses diferentes comportamentos, diferentes emoções, podem ser explicadas através da teoria dos humores.
A teoria Hipocrática, no entanto, tem um problema, algo grave. Ela consegue explicar muito bem, por exemplo, um tumor ou uma doença crônica, uma dor nas costas, um desenvolvimento de um câncer, ela consegue explicar tudo o que é crônico, toda doença que é autóctone. Mas ela não consegue explicar ou ela tem muita dificuldade em explicar como que várias pessoas podem adoecer ao mesmo tempo. Como que uma doença pode passar de uma pessoa para outra. Porque como é que o meu... se os meus hormônios estão em desarmonia, como é que eu vou passar para você? Segundo teoria do Hipócrates, se lá no Congresso eles aceitassem a teoria hipocrática não ia precisar fechar as escolas. Porque como é que o humor de uma criança vai passar pro de outra criança lá. Tá de boa, tá de boa, pode ficar pode ir para aula, não precisa de máscara, porque não existe a ideia de contágio exatamente dentro da teoria hipocrática. Contágio, essa é a palavra.

A TEORIA HIPOCRÁTICA E AS DOENÇAS CONTAGIOSAS - 03:51 a 06:48

Contágio uma é uma palavra curiosa, assim. Ela vem do latim cum tangere e que significa tocar, tocar junto. Cum de com mesmo e tangere aqui dá o nosso tocar.
Para quem gosta de Bíblia, no novo testamento, quando Jesus ressuscitou e encontra três do apóstolos andando na rua, a primeira frase que ele fala, acredito que a Mateus, não tenho certeza, é "noli me tangere"  que seria "não me toque". Se eu não me engano porque Mateus faz menção de querer abraçar Jesus. Aí a gente vê um exemplo dessa palavra sendo usado. Tangere, tocar. Então "contágio" é aquilo que a gente não faz nos tempos do Corona. A gente não sai encostando nas pessoas. A gente não encosta no rosto porque a gente quer evitar o contágio.
Como ao longo da história as pessoas percebiam que existiam relações, que as doenças não existem no vácuo, a doença não é uma coisa que diz respeito a um único indivíduo. Algumas doenças são assim; mas outras não, outras são doenças infecciosas, isso é, transmissíveis de pessoa a pessoa. Causadas pelas entidades mais diferentes, pode ser causada por fungo, pode ser causada por parasita, por vírus ou bactéria... tem de tudo, tem para todos os gostos, todas as cores, todos os tamanhos, mas o fato é que as pessoas percebiam essas relações.
Tanto que Vetrúvio, que é um arquiteto romano do século I, foi contemporâneo de Jesus e de Virgílio e morreu cerca de 15 depois da era comum, escreveu um dos tratados mais importantes da história da arquitetura que se chama, veja o nome, Sobre Arquitetura, "De Arquitetura". Nesse tratado, ele menciona que quando você constrói um prédio perto de um pântano, a fumaça que exala do pântano tem cheiro ruim, a peçanha dos animais mortos, ele chega falar do bafo dos animais, e eu não estou brincando, ele realmente fala do bafo dos animais... (risos)
Isso tudo forma uma neblina e a palavra que ele usa é "nebula" tá? Então realmente é uma nuvem, uma fumaça, e quando sopra o vento essa fumaça venenosa, digamos assim, é jogada para cima dessa casa que foi construída e próximo ao pântano e isso pode gerar um desequilíbrio dos humores. Então é uma forma de como a sabedoria através da boca de Vetrúvio, grande arquiteto romano que consegue conciliar a teoria dos humores do Galêno com essa ideia de uma fumaça venenosa que vai ser posteriormente chamada de: miasma.

OS MIASMAS – 06:49 a 9:47

Então o que é um miasma? "Miasma" vem do grego antigo e quer dizer "poluição". Então basicamente eles conseguiam observar a mesma coisa que a gente consegue hoje. Eles olhavam para um pântano, eles sentiam que o pântano era fedido, eles entendiam que existe alguma coisa no pântano porque as pessoas que moravam perto dos pântanos ficavam doentes com mais frequência. Eles não sabiam dizer o que exatamente. Talvez fosse a água envenenada, mas parecia que não, parecia que tinha alguma coisa no ar assim... talvez porque o ar fosse ruim...

E sabe como é que diz "ar ruim" em italiano? "Male aria". Ou seja: malária. A malária é a doença do ar ruim. 
Eles conseguiam entender que existe uma relação entre as pessoas sofrerem de malária e pessoas morarem perto de pântanos. Eles não sabiam que o vetor da malária era um mosquito e que o mosquito se procriava no pântano. Daí ele picava uma pessoa infectada com a malária e ficava infectado e picava as outras pessoas. E assim o parasita se espalhavam.

Essa relação do pântano com ser humano através de um vetor, o nosso querido amigo mosquito, que é o maior assassino da história e certamente o animal mais odiado do mundo. Por que poxa quem é que não odeia um mosquito? Até sapo tem quem goste... mas mosquito tô para ver ainda. Essa relação da malária com o mosquito só foi descoberta no final do século XIX. Demorou muito. Então a malária sempre foi entendida como uma doença miasmática, uma doença que era causada por ar ruim, uma doença da poluição. Miasmas = poluição em grego. Então basicamente se você gostava de Lost... meio que os caras não inventaram nada né? A diferença é que a Nuvem Preta do Lost (risos) tem os raios...Mas fora isso, ela meio que está ali, ela é exatamente a ideia de um miasma, de uma nuvem assassina que causa doenças. O miasma de Vetrúvio pelo menos não jogava pra cima as pessoas pra cima das árvores, mas matava igual. Inclusive, faço um parêntese aqui, talvez você conhece o Vetrúvio porque ele foi enormemente influente durante o Renascimento. Existe um desenho famosérrimo de ninguém menos que Leonardo Da Vinci, que se chama o Homem Vetruviano. Eu tenho certeza absoluta que você conhece esse desenho.
Porque esse desenho é o mais famoso de todos o Renascimento italiano. Ele tá na moedinha de 2 euros e é o desenho mais famoso do nosso querido Leonardo com os seus braços e pernas abertinhos em cima de um círculo e um quadrado. Aquele desenho se chama o Homem Vetruviano justamente porque ele é uma resolução, uma tentativa de resolução de um problema matemático que o Vetrúvio sugere no "De Arquitetura". Mas isso não vem ao caso para as doenças. É só interessante mesmo.


AVICENA E O CÂNON DA MEDICINA – 09:48 a 14:01

Mas o que, sim, vem ao caso é o trabalho de um acadêmico do Islã, um médico persa que em 1025 produzir um texto chamado o "Cânon da Medicina". Se o teu primo estuda Direito, tu vai saber que ele talvez estude Direito Canônico na universidade. É exatamente o mesmo uso que tá nesse livro, O Cânon da Medicina: os princípios da medicina. O médico que produziu esse volume, um volume gigantesco se chama Ibn Sina. Em português ele é muitas vezes chamado de Avicena. Então existe uma latinização do nome persa na realidade. Ibn Sina, então o Filho de Sina. Assim como Bin Laden, Osama, filho de Laden.
O Avicena produz esse grande compêndio da medicina. Ele tenta organizar todo o saber médico do seu tempo nessa única obra. Então ele meio que cria um grande volumesão didático que os médicos depois eles vão poder usar. Ele faz parte de um movimento que se chama o Renascimento do Islã, idade de ouro do Islã. Todo mundo ouviu falar do Renascimento Italiano! Leonardo da Vinci! Michelangelo Buonarroti! Rafaello Sanzio d'Urbino. Desse todo mundo ouviu falar.
Agora, dos pobres dos muçulmanos lá... dos caras que inventaram o Al-Khwarizmi, que inventou o algoritmo. O próprio Avicena... O Ibn Rushd que dá Averróis, o grande comentador de Aristóteles. A "Falsafa" que seria a resposta filosófica árabe, muçulmana de um modo geral, também persa...  Mas seria quando Islã absorveu a filosofia grega. Muita gente nunca ouviu falar disso. Porque o nosso sistema procura obscurecer tudo o que é conquista cultural não europeia e não, hoje em dia, estadunidense. Mas o Avicenna é um titã, digamos assim, da história da medicina.
A influência dele assim como a de Hipócrates, vai ser tão grande... Eu vou ter que falar de algum literato. Porque eu já falei 12 minutos e não apareceu.  Apareceu de tudo, mas de literatura mesmo não apareceu ainda.
Em "O Alienista" de Machado de Assis, quando o nosso herói volta para o Brasil tendo estudado na Europa, ele virou médico na Europa e volta cheio de ideias novas. E ele estudou tanto, diz o Machado, "que ele estudou até os textos do Avicenna". Então vejam como essa tradição esse texto é de 1800 e pedrada... O Alienista é dos anos setenta se não me engano, por aí... Então vejam quanto é longíngua essa essa sobrevida da fama do Avicenna.
O Avicenna no Cânon da Medicina, aceita uma versão da teoria miasmática então existe também esse mecanismo de equilíbrio dos vários humores. Mas ele também postula a existência de uma forma de contágio. Então ele percebe que há doenças que se espalharam e dá ruim mesmo... Acaba espalhando pra todo mundo... Então ele cria essa vertente da teoria dos miasmas mais clássicas. Vai existir uma série de pesquisadores ao longo da história da medicina que vão apontar para mesma coisa. Um outro cara que vai sugerir uma coisa muito parecida é um médico italiano que se chama Fra Castoro.
Girolamo Fra Castoro que é um médico do Renascimento e que também propõe uma teoria do contágio. A gente vai falar mais do Fra Castoro mais para frente porque ele é super relevante. E o nome dele é esse mesmo: Frei Castor. (risos) E essa teoria dos miasmas que vai do Vetrúvio, no ano zero, ao redor do ano zero, ao Avicena em 1045, ao Fra Castoro em mil quinhentos e pouco, ao Alienista em 1800 e pouco, essa teoria na realidade sobreviveu mais do que a teoria hipocrática. Ela chegou até o início do século 20.


A REVOLUÇÃO BACTERIOLÓGICA - 14:02 a 17>

Mesmo depois da revolução de laboratório, da revolução que a partir de 1860, mudou completamente a história da medicina, que em português a gente chama de Revolução Pasteuriana. Mas eu não vou usar esse nome. Eu vou chamar de Revolução Bacteriana. Bacteriana é bem mais legal, parece que tem uma raça de ETs . "Crianças acordem! Fujam porque os bacterianos estão chegando!" (risos)
Mas o motivo pelo qual eu vou falar Bacteriano é outro na verdade. Porque o Pasteur, o Louis Pasteur em francês né, o Luís Pastor que é o responsável pelo teu leite pasteurizado, ele não é o único e é certamente um pesquisador importantíssimo que contribuiu realmente dezenas de vezes ao progresso científico do século XIX, mas ele não é o único. Existem vários outros que trabalharam junto dele. Ou paralelamente a ele, alguns de que ninguém nunca ouvi falar, por exemplo, o Virchow que só os médicos eu acho vão conhecer, e é muito importante para a história do câncer. E outros que já são mais famosos como o Hansen que descobriu a primeira bactéria que causa doenças em seres humanos né, a hanseníase, a lepra, basicamente. Mas acima de todos o Robert Koch. Seria Roberto Koch em inglês... mas como esse é um podcast de família eu vou usar o nome em alemão! (risos) então Koch, Roberto, o cozinheiro. E o Koch é um dos grandes, também é um titã da história da medicina e da ciência. E a lista continua com Joseph Lister também na Inglaterra. E, sim, você tem que agradecer ao Lister toda vez que você lavou seus dentinhos e faz o seu gargarejo com o listerine você agradece o Lister, porque, sim, é esse mesmo!
Então a lista de estudiosos que colaboraram na revolução bacteriana é enorme e são muitas pessoas. Não é justo que o Pasteur acabe ficando com toda glória e toda a fama. Então por isso que eu não uso o termo Revolução Pasteuriana e uso o termo Revolução Bacteriana. Então, até a Revolução Bacteriana acontecer, em torno de 1880, e se popularizar até o início do século XX, porque nunca na ciência nada é abrupto. Então existe uma série de estudos que apontam em uma nova direção que é muito diferente do que tinha sido praticada até então. E a comunidade científica leva um tempo para se adaptar a isso, para aceitar isso, para estudar isso. Então mesmo depois de 1900... em 1905, 1912 em que já se sabe... os germes já foram aceitos. Já se conhecem diversas bactérias, se sabe que existem vírus mas ninguém nunca conseguiu observar um vírus até então. Nós vamos falar mais sobre isso. Mesmo assim as pessoas continuam falando sobre miasmas, sobre o ar ruim, é como se os germes e as bactérias vivessem no ar e caíssem na tua cara quando você tivesse andando na rua. E vejam só: elas não estão erradas, por que no duro não é isso que o Corona faz? Eu vou pegar o avião não é a forma como eu posso acabar sendo contagiado pelo Corona? Não é transmissão via aérea? Então Essa teoria é uma teoria obsoleta. É uma teoria que não está correta, digamos assim. Mas ela também não tá tão longe da verdade.

CONCLUSÃO - 17:40 a 18:42

E aqui eu encerro o episódio de hoje, retomando uma coisa que eu falei da vez passada: o fato de que a teoria não funciona tão bem, não significa que, na prática, ela não funcione. A explicação do porquê as pessoas adoeciam de malária era que o fedor dos pântanos causava doença. A gente sabe que não é isso que causa doença. No entanto, isso evitava que as pessoas morassem perto dos pântanos e, portanto, elas não moravam perto do mosquito e, portanto, elas não pegavam a doença. Ou seja, todo mundo ficava contente.
E por hoje é só. No próximo episódio eu juro que a gente fala de literatura. Eu citei o Machadão hein! Em minha defesa, eu citei o Machadão hoje. Mas no meu próximo episódio eu juro que a gente começa a falar de literatura e a gente vai falar da "Peste". Não a do Camus! Essa tá muito da modinha. A gente vai falar da "A Pestes" do João do Rio. Até a próxima.

Ouça o podcast Literatura Viral do Prof. Áureo aqui.

 


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