“A saúde é direito de todos e dever do Estado” (1-4). Assim inicia o artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil. E é justamente essa escrita que gera um fenômeno conhecido como judicialização da saúde, que nada mais é do que a busca pelo acesso à saúde através de meios processuais (3).
Durante muito tempo os serviços médicos estiveram restritos à elite (3), por não haver em nosso País um sistema de saúde que ordenasse o cuidado e a assistência prestada. Tal fato começou a mudar apenas na década de 1970, quando, no cenário de luta contra os atos praticados pelo regime militar, surgiu o Movimento da Reforma Sanitária (3), que trouxe como resultados, por exemplo, a formação dos Conselhos de Saúde, o princípio de universalização da saúde e o dever do Estado nesse campo (3). Foi nesse cenário, que em 1988, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), sistema de saúde público brasileiro que é pautado na promoção de saúde, proteção e recuperação do indivíduo (2,3).
Uma grande conquista da população, visto que por suas características pública e universal (fazendo, assim, parte do pequeno grupo de países composto por Austrália, França, Reino Unido, Canadá e Suécia, cujos sistemas de saúde também possuem essas características) (3), qualquer cidadão brasileiro passou a poder ser atendido e consequentemente receber assistência médica. No entanto, ao mesmo tempo isso trouxe uma consequência, dado que a partir do momento que consta no texto constitucional que a saúde é um direito do indivíduo e que é dever do Estado provê-la, e este não o consegue fazer, a pessoa pode recorrer à Justiça para que determinada ação seja cumprida (2). Na maior parte dos casos isso ocorre para a solicitação de tratamentos que não estão disponíveis na rede pública. Além disso, é possível também que o cidadão recorra contra a rede privada quando essa não cobre determinado tratamento ou procedimento que possui custo elevado.
É preciso destacar aqui que o SUS é um sistema de saúde de referência mundial, sendo reconhecido por isso. Lembremos do nosso programa de imunizações, da vigilância sanitária, do percurso percorrido pelo usuário dentro da rede quando necessita de um tratamento, entre outros. No entanto, sua organização, da forma da qual esta hoje, gera um acúmulo de processos judiciais provocando impactos tanto no campo da saúde quanto no campo jurídico. Basta observarmos que os processos costumam ser demorados (2), o que leva a uma burocratização do campo do direito (com um número crescente de processos parados) (5), além de levar a um maior prejuízo ao paciente, que já estando doente, ainda terá de passar por todo o percurso do ordenamento jurídico para ter seu direito constitucional cumprido (6).
Torna-se necessário, portanto, buscar os motivos que levam a essa procura pela judicialização e conhecer os impactos dessa em nosso meio. Um dos motivos, sem dúvida, é o envelhecimento da população (2,3) que temos presenciado ao longo dos últimos anos. Com isso, cada vez mais as pessoas passam a utilizar o sistema de saúde por mais tempo, o que gera ônus aos cofres públicos cada vez maiores. Além disso, com o avanço da idade, fica cada vez mais propensa a ocorrência de novos agravos e com isso a necessidade de que novos procedimentos e tratamentos sejam realizados. Outro ponto importante é quando olhamos para a crise econômica (2,3) que nos acompanha há tempos, a qual levou milhares de brasileiros a optarem pela migração do sistema privado para o sistema público, incrementando assim a quantidade de usuários do serviço público.
Não bastasse tudo isso, ainda enfrentamos cortes na pasta da saúde (2,3), o que faz com que gestores precisem optar pela retirada de alguns serviços de suas carteiras, gerando a possibilidade com que mais pessoas recorram ao Direito como forma de terem assegurado o que traz a carta magna do País.
Aqui, é preciso entender que cada pasta da União possui um orçamento pré-definido e que quando ocorre uma decisão judicial para que uma pessoa ou um grupo pequeno seja beneficiado com determinado tratamento ou procedimento, isso pode gerar um desequilíbrio na balança (2). Por outro lado, é preciso para olhar para a outra ponta, local em que está o paciente que muitas vezes depende dessa decisão para sua sobrevivência. Ou seja, nota-se aqui a importância do conhecimento, por parte do profissional do direito, do campo jurídico, sem, no entanto esquecer-se o entendimento do funcionamento da dinâmica da saúde (tanto em contexto público quanto particular) (2), para a tomada de decisão que vise beneficiar o indivíduo, sem, no entanto, levar a um desequilíbrio do sistema de saúde (7).
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trazem que de 2008 a 2017 houve um crescimento de 130% nos pedidos acerca da judicialização da saúde (2,3,8). Nesse período foram quase 500 mil processos analisados em primeira instância e quase 280 mil em segunda (5,7). Quando recorremos à literatura sobre a situação do País nesse campo, observa-se que foram gastos, em 2014, cerca de R$ 800 milhões na compra de medicamentos judicializados (9). E se esse valor já chama a atenção, é possível ficar perplexo quando percebemos que em 2016 ele saltou para a casa de R$ 1,6 bilhão (6). O Tribunal de Contas da União (TCU) traz que de 2010 a 2015 foram gastos por decisão judicial, com apenas três medicamentos de alta complexidade, R$ 1,5 milhão (5). Em levantamento realizado pelo Ministério da Saúde (3,7,8), foi constatado um aumento de 13 vezes nos gastos com demandas judiciais em sete anos. Na saúde suplementar a situação não é muito diferente, conforme levantamento realizado pela Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) (5), que traz que os gastos com despesas judiciais nessa esfera passaram de R$ 558 milhões em 2013 para R$ 1,2 bilhão em 2015.
Mediante tais dados é preciso buscar soluções que visem reduzir o processo de judicialização da saúde, como forma de reduzir não apenas os ônus do sistema de saúde, mas também a burocracia do ordenamento jurídico. Uma alternativa são as audiências de conciliação, através das quais se busca um acordo entre requerente e requerido como forma de evitar que a demanda seja levada a outras instâncias e com isso gere acúmulo de processos no judiciário. Em Tocantins, por exemplo, no ano de 2019, essa alternativa significou uma redução de aproximadamente 70% no número de novos casos (7). Outra solução passa pelo investimento em um sistema de saúde mais forte (2), com a consequente melhoria das políticas públicas de saúde, o que inclui a inserção de novos tratamentos na rede pública (6). Em curto prazo isso poderia gerar um gasto maior, porém quando pensamos no longo prazo é possível perceber que ocorreria uma economia dos recursos que hoje são empenhados no campo jurídico. Essa é, na verdade, a linha de pensamento que gestores precisam adquirir o início da resolução dessa questão: a troca do pensamento puramente eleitoral para o pensamento a longo prazo.
Visando auxiliar profissionais do direito nessa atuação, o CNJ criou um portal digital com notas e pareceres técnicos acerca dos temas judicializados em saúde (7). Além disso, o órgão vem produzindo ao longo dos últimos anos uma série de audiências públicas, debates e seminários sobre o tema (3).
É preciso compreender que a saúde é um direito de todos e que o desafio maior é o de protegê-la enquanto tal ao mesmo tempo em que se buscam formas de fornecê-la com qualidade a todos. Enquanto princípio constitucional, todos devem ter acesso a ela, sendo, no entanto, necessário ter em mente que o direito à liberdade encontra um limite na própria liberdade do outro, não sendo possível oferecer tudo a todos em todo o tempo. Para isso é preciso que a Justiça faça as escolhas necessárias, sempre com o melhor embasamento, visto que ela é uma premissa elementar em uma democracia (5), podendo servir como instrumento de acesso à saúde quando necessário, sem perder de vista que quando um indivíduo é beneficiado através da judicialização da saúde, essa decisão terá impacto em toda a coletividade (4).
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REFERÊNCIAS:
(1) BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. [S. l.: s. n.], 2017. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_06.06.2017/art_196_.asp#:~:text=196.,sua%20promo%C3%A7%C3%A3o%2C%20prote%C3%A7%C3%A3o%20e%20recupera%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 27 ago. 2020.
(2) Judicialização da saúde: tudo o que você precisa saber. Blog Ipog, [S. l.], 27 jun. 2019. Disponível em: https://blog.ipog.edu.br/direito/judicializacao-da-saude/. Acesso em: 22 ago. 2020.
(3) Soluções construídas pelo CNJ buscam reduzir judicialização da saúde. Politize!, 12 fev. 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/judicializacao-da-saude-no-brasil/. Acesso em: 22 ago. 2020.
(4) AZEVEDO, Paulo Furquim de. Juízes de Jaleco: a judicialização da saúde no Brasil. [S. l.], 12 fev. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/342720909_Juizes_de_Jaleco_a_judicializacao_da_saude_no_Brasil. Acesso em: 22 ago. 2020.
(5) CONDE, Luiz Felipe. A crescente judicialização e aumento da influência do Judiciário no sistema de saúde. Consultor Jurídico, [S. l.], 18 dez. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-18/judicializacao-influencia-judiciario-sistema-saude. Acesso em: 22 ago. 2020.
(6) O que é judicialização em saúde?. #Pacientesnocontrole, [S. l.]. Disponível em: https://www.femama.org.br/pacientesnocontrole/o-que-e-judicializacao-em-saude/. Acesso em: 22 ago. 2020.
(7) HERCULANO, Lenir Camimura. Soluções contruídas pelo CNJ buscam reduzir judicialização da saúde. CNJ, [S. l.], 10 jun. 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/solucoes-construidas-pelo-cnj-buscam-reduzir-judicializacao-da-saude/. Acesso em: 22 ago. 2020.
(8) MELO, Jeferson; HERCULANO, Lenir Camimura. Demandas judiciais relativas à saúde crescem 130% em dez anos. CNJ, [S. l.], 18 mar. 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos/. Acesso em: 22 ago. 2020.