No ano passado, escrevi aqui no Academia Médica o texto intitulado "Cotas para os concursos de Residência Médica" (clique AQUI)(2015), motivado pela adoção pelo município de São Paulo a reserva de vagas para afrodescendentes e deficientes físicos para os concursos de Residência Médica nos hospitais da cidade. A discussão gerada por aquele texto foi muito frutífera e proporcionou uma boa reflexão acerca do assunto.
O texto foi um dos mais lidos na história do AM e provocou a a seguinte discussão: se a partir da equalização do ingresso nas universidades públicas (reconhecidamente as de melhor qualidade de ensino do país) os egressos afrodescendentes já teriam as mesmas condições de competição pelas vagas ou não. (link AQUI)
Talvez devido a popularidade do texto de outrora (lido mais de 100.000 vezes) foi lançada uma consulta ao CFM sobre a moralidade e valor ético da questão para os concursos de Residência Médica, no caso exemplificando a reserva de uma de três vagas para política de "inclusão social".
Neste ano, a prática da política de cotas nos programas de Residência Médica persiste, como pode ser evidenciado pelo edital ( Clique Aqui para ler o Edital)
Neste ano, sob o parecer 21/15, o CFM respondeu o seguinte:
DA CONSULTA Gostaria de saber qual é a posição do CFM em relação ao surgimento de cotas raciais no processo seletivo de residência médica e se algo está sendo feito para impedir essa injustiça. Todos tivemos a mesma formação e não é justo que uns sejam beneficiados, principalmente nas áreas mais concorridas, citando um processo em São Paulo, no qual de três vagas para Dermatologia, uma é reservada para as cotas.
DO CONCEITO
As cotas raciais constituem reserva de vagas em instituições públicas ou privadas para grupos de pessoas com situações específicas originadas de sua condição racial ou étnica, na grande maioria das vezes, negros e indígenas.
Foram criadas com o objetivo de superar aquelas desigualdades socioeconômicas que mantêm em condições díspares cidadãos de estratos sociais distintos, aspirando a atenuá-las e criar uma sociedade mais justa e igual. Têm caráter temporário e visam incrementar a inclusão social de pessoas situadas à margem da sociedade.
DOS ASPECTOS HISTÓRICOS
A ideia original surgiu na Índia, na década de 1930, como uma forma de ação afirmativa para reverter o racismo histórico contra determinadas classes raciais. Estão presentes no arcabouço legal daquele país desde a constituição de 1949 e são obrigatórias em todos os órgãos estatais, incluindo aqueles dedicados à Educação.
Outros países que também adotam as cotas raciais são a Malásia (beneficiando os malaios), África do Sul, Canadá (vagas no parlamento para os esquimós), Austrália (beneficiando os aborígenes), Nova Zelândia, Colômbia (cotas para negros e índios nas universidades).
Nos Estados Unidos da América, o sistema de cotas raciais teve seu início na época das lutas pelos direitos civis, na década de 1960. Era um modo de promoção da igualdade entre brancos e negros norte-americanos. O presidente John Kennedy foi um dos apologistas da medida, que passou àquela época a ser adotada nas escolas americanas. A conclusão naquele país é que as cotas raciais beneficiaram a classe média negra, em detrimento das classes mais baixas da população americana.
A Suprema Corte dos EUA, em junho de 2007, aboliu definitivamente as cotas raciais, decidindo que a raça de uma criança não seria mais definidora do local onde ela deveria estudar.
A Constituição Federativa do Brasil, no seu item VIII do artigo 37, ao definir que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência, marca o início da reserva de vagas para grupos específicos no Brasil. Ela inicia em nosso país nas universidades, com uma lei específica carioca, datada do ano 2000, que reserva 45% das vagas a alunos oriundos da rede pública estadual e municipal. No ano de 2002, uma nova Lei estadual do Rio de Janeiro estende esse benefício para aqueles considerados pardos e negros (20% das vagas).
No entanto, foi a Universidade de Brasília a primeira a adotar o sistema de cotas para negros e índios, em seu vestibular de 2003. Esta e, logo depois, a Universidade Federal da Bahia passaram ambas a adotar fatores socioeconômicos e a cor ou raça dos indivíduos como critérios para reserva de vagas.
DO ARCABOUÇO LEGAL BRASILEIRO
É importante citar a legislação vigente no território brasileiro sobre o tema. A Constituição Federativa do Brasil, no seu artigo 37, item VIII, proclama: a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.
A Lei Federal nº 10.558/02, conhecida como Lei das Cotas, cria em seu artigo 1º o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.
A Lei Federal nº 12.288, de 20 de julho de 2010, institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades.
A Lei Estadual (Rio de Janeiro) nº 3.524, de 28 de dezembro de 2000, garante a reserva de 45% das vagas nas universidades estaduais para estudantes das redes públicas municipais e estaduais de ensino.
A Lei Estadual (Rio de Janeiro) nº 3.708/2001 institui o sistema de cotas para estudantes denominados negros ou pardos, com percentual de 20% das vagas das universidades estaduais
DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMA
A busca de oportunidades iguais para os indivíduos de uma nação é um imperativo politicamente correto, humano e ético.
O sistema de cotas raciais para o ingresso na Universidade Pública brasileira é uma tentativa de estabelecer justiça quanto ao acesso à formação profissional dos jovens que nascem no Brasil.
A justificativa é a disparidade existente entre o ensino fundamental e médio praticado nas instituições privadas em relação ao ensino do mesmo nível praticado nas escolas públicas brasileiras, onde as pessoas desfavorecidas econômica e socialmente estudam. Houve nessas escolas públicas uma deterioração progressiva da qualidade educacional nas últimas sete décadas, gerando uma desigualdade de chances, especialmente para aquelas pessoas de etnia afrodescendente.
Quanto à reserva de vagas para o ingresso em Programas de Residência Médica no Brasil, essa justificativa não se aplica, porquanto aqueles candidatos oriundos de estratos sociais desfavorecidos já se beneficiaram das cotas raciais no vestibular de acesso ao ensino superior, saneando as eventuais desigualdades e, enquanto egressos de escolas médicas públicas, tiveram na sua formação similar oportunidade.
DA RESPOSTA AO CONSULENTE
Pergunta do consulente: Gostaria de saber qual é a posição do CFM em relação ao surgimento de cotas raciais no processo seletivo de residência médica e se algo está sendo feito para impedir essa injustiça.
Resposta ao consulente: Não há justificativa ética ou moral para cotas raciais a processo seletivo de residência médica no Brasil, uma vez que as eventuais desigualdades foram saneadas no vestibular de acesso ao ensino superior e os jovens de estratos sociais desfavorecidos, enquanto egressos de escolas médicas públicas, tiveram na sua formação similar oportunidade.
Este é o parecer, SMJ.
Brasília, 22 de maio de 2015
LÚCIO FLÁVIO GONZAGA SILVA
Conselheiro relator