"80% das crianças no mundo foram punidas fisicamente por seus pais."
Segundo UNICEF em 2014
Uma das punições mais comuns foram as palmadas, sendo esta uma prática amplamente aceita ao longo da história em vários países, entre eles o Brasil. Em todo o mundo há aquecidas discussões se os pais têm este direito sobre seus filhos ou não, com o conceito que "palmadas educativas" não são uma forma de agressão física.
Punição física é o uso de força física sem deixar lesões graves, com a intenção de fazer com que a criança ou adolescente experimente a dor com o objetivo de mudar seu comportamento ou corrigir um erro que os pais acham que possa ter cometido.
Palmadas são definidas como o ato de bater com as mãos espalmadas nas nádegas ou mãos de alguém, então sem dúvidas são uma forma de agressão física, com os mesmos efeitos deletérios de outras agressões físicas ou verbais.
Por que os pais ainda dão palmadas em seus filhos?
Por vários motivos:
- São atitudes que passam de geração a geração, com a seguinte interpretação: pais acham que são boas pessoas pois levaram palmadas ou apanharam de seus pais quando crianças. Porém tal argumento não tem o menor valor, uma vez que existem pessoas de má índole ou ditas más pessoas que apanharam muito de seus pais na infância.
- Outra questão diz respeito à falta de conhecimento dos pais quanto ao malefício das palmadas na educação de seus filhos e das consequências que podem trazer na adolescência e vida adulta deles
- Também precisa-se de uma maior mobilização dos pediatras e sociedades de pediatria para alertar e esclarecer aos pais dos males que palmadas, surras e humilhações verbais podem causar às crianças a médio e longo prazo
- Por fim, a ausência ou não cumprimento de medidas legais contra pais que praticam qualquer forma de castigo físico em seus filhos.
Todos os pais ou a maioria deles amam e querem o bem de seus filhos, mas quando se trata de disciplina alguns equivocadamente usam força física e agressões verbais para punir, intimidar ou mudar comportamento de seu filho. Esta atitude não se justifica. Não traz benefícios a ninguém, pois bater em uma criança que está aprendendo regras é perder totalmente a razão, além de ser extrema covardia.
A incoerência dos pais em darem "palmadas educativas" em seus filhos é tamanha que chega a ser cega. Se o professor de seu filho, por um comportamento errado dele na escola, tomar a mesma atitude de lhe dar uma palmada, com certeza os pais não vão gostar. Irão tirar satisfações na escola e até processar tanto a escola quanto o professor.
O que dizem os últimos estudos sobre palmadas?
A Academia Americana de Pediatria (AAP), maior organização profissional de pediatras dos Estados Unidos, já em 1998 desencorajava os pais a baterem em seus filhos, mesmo com palmadas. Esta orientação diminuiu o castigo corporal mas não na magnitude esperada, sendo que em 2016, 19 estados americanos permitem o castigo corporal nas escolas desde que não deixe marcas.
Com a publicação do trabalho "Spanking and child outcomes: Old controversies and new meta-analyses" de Gershoff (Universidade Texas) e Grogan-kaylor (Universidade Michigan) em 2016, a Academia Americana de Pediatria adotou em dezembro de 2018 uma atitude mais enfática e enérgica em relação a qualquer tipo de castigo físico, palmadas ou humilhações verbais em crianças.
O trabalho destes autores foi a revisão de mais de 50 anos de artigos com mais de 160.000 crianças, especificamente sobre os efeitos das palmadas e suas consequências na vida destas crianças. Eles analisaram dezessete desfechos desfavoráveis, sendo que as crianças agredidas com palmadas apresentaram na evolução de suas vidas, 13 destes desfechos.
Esta foi a maior revisão de literatura já feita, com avaliação de quatro metanálises, evidenciando problemas cognitivos, emocionais e comportamentais a curto e longo prazo nas crianças que levaram palmadas de seus pais. Os principais problemas foram piora da relação pais e filhos, as crianças se tornam mais desafiadoras, mais ansiosas, com maior prevalência de depressão, alterações cognitivas, menor coeficiente intelectual, maior abuso de álcool e drogas, assim como maior agressividade na adolescência e como adultos jovens.
Estudos com ressonância magnética demonstraram mudanças na anatomia do cérebro dessas crianças, com diminuição de volume cerebral e diminuição de substância cinzenta pré-frontal.
A conclusão do estudo foi que dar palmadas não está associado a mudanças de comportamento ou submissão, tem uma eficácia muito curta e pode gerar resultados prejudiciais não intencionais severos a longo prazo na personalidade e comportamento dessas crianças agredidas com palmadas.
O que dizem as leis sobre castigos físicos, palmadas ou humilhações verbais contra crianças?
Apesar dos castigos físicos estarem diminuindo nos Estados Unidos, existem poucas leis proibitivas. Em 53 países existem leis que protegem especificamente crianças e adolescentes, sendo o primeiro país a ter este tipo de lei a Suécia, e o Brasil o quarto.
No Brasil as leis que protegem estão no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que é a Lei 8069, criada em julho de 1990. A Lei Bernardo (Lei 13010) criada em junho de 2014, também conhecida como Lei das Palmadas, alterou o artigo 18 do ECA, definindo como castigo corporal toda ação de natureza disciplinar ou punitiva, com uso da força física que resulte em dor ou lesão na criança ou adolescente.
A partir desta data dar palmadas ou humilhações verbais passaram a ser crime passível de reclusão e até perda da guarda dos filhos. Após promulgação da Lei das Palmadas houve diminuição de 17 % das queixas de agressões contra crianças e adolescentes, o que ainda é muito pouco. O objetivo desta lei é o mesmo da Lei Maria da Penha promulgada em 2006, de diminuir agressões às mulheres assim como caracterizar como crime este tipo de violência.
E agora?
Os pais precisam entender que seus filhos não são sua propriedade, são seres com direitos e deveres previstos em leis e devem ser protegidos por elas. As leis não são apenas punitivas, como também devem ter caráter educativo, pedagógico e de proteger as crianças que são as mais vulneráveis.
Para acabar com esta epidemia que é dar palmadas ou agredir as crianças de qualquer forma, deverão se mobilizar vários segmentos da sociedade em uma verdadeira força tarefa. Deve haver engajamento da população após o conhecimento dos malefícios das palmadas através de campanhas de divulgação e reeducação dos pais, assim como abordagens legislativas e legais mais efetivas.
Pediatras e suas associações de classe devem ter sempre como prioridade em sua atividade profissional o bem estar das crianças e adolescentes, devem imediatamente assumir esta responsabilidade de comandar esta força tarefa, assim como iniciou a Academia Americana de Pediatria no início de 2019 com a publicação do artigo : American Academy of Pediatrics Says No More Spanking or Harsh Verbal Discipline.
Os pediatras são importantes fontes de informações aos pais e, a cada consulta, assim como perguntam sobre crescimento, alimentação, escola e vacinas, devem perguntar sobre comportamentos inadequados e como os pais disciplinam seus filhos. Devem desencorajar ao máximo uso de palmadas ou outros castigos físicos e dar informações aos pais da não efetividade das palmadas e de suas consequências no futuro de seus filhos.
Em 2003 somente 5% dos pediatras americanos discutiam sobre disciplina com os pais, em 2012 este número subiu para 75%. Pediatras devem ter os pais como aliados na proteção das crianças e adolescentes, orientando e incentivando formas saudáveis de disciplinar, como reforços positivos, estabelecer limites, suspensão de privilégios entre outras. Pediatras e sociedades devem distribuir aos pais materiais educativos e mostrar resultados destas pesquisas (www.healthychildren.org).
No Brasil existe, desde 2016, a Rede Não Bata Eduque (RNBE), que tem a Sociedade Brasileira de Pediatria no grupo gestor, que ministra para pais cursos práticos para estimular a educação sem violência.
Ajudar os pais a iniciar uma nova maneira de disciplinar seus filhos é realmente útil para o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes. Esse estudo de Gershoff e Grogan-Kaylor é mais que suficiente para mobilizar todos os pediatras nesta força tarefa de acabar com qualquer tipo de agressão física e verbal com nossas crianças. É importante entender que para o sucesso de força tarefa não devemos ver os pais como pessoas más ou cruéis, devemos entendê-los, orientá-los e nunca esquecermos que amam seus filhos e querem uma infância e vida adulta saudável e feliz para eles.
Referências bibliográficas
Positive parenting, not physical punishment.CMAJ. 2012 Sep 4; 184(12): 1339 John Fletcher, MB BChir MPH, Editor-in-Chief.
JAMA Pediatr. Published online December 17, 2018. doi:10.1001/jamapediatrics.2018.4344Corporal Punishment and Children’s Report Cards—Failing Our Children Antoinette L. Laskey, MD, MPH, MBA1
Effective Discipline to Raise Healthy Children
Robert D. Sege, Benjamin S. Siegel, COUNCIL ON CHILD ABUSE AND NEGLECT, COMMITTEE ON PSYCHOSOCIAL ASPECTS OF CHILD AND FAMILY HEALT Pediatrics December 2018 volume 142/issue 6 e 20183112
Spanking and child outcomes: Old controversies and new meta-analyses.
Gershoff ET1, Grogan-Kaylor A Journal of Family Psychology 2016, vol 30 n 4, 453-46
American Academy of Pediatrics Says No More Spanking or Harsh Verbal Discipline. Jennifer Abbasi JAMA. Published online January 16, 2019. E1-3