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Profissional de saúde, como está sua saúde mental durante a pandemia?

Profissional de saúde, como está sua saúde mental durante a pandemia?
Felipe Dalvi
abr. 21 - 13 min de leitura
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De imediato, quem sempre vem à nossa mente nesse caso são médicos e enfermeiros, mas a abrangência é muito maior: socorristas, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, dentistas, dentre outros. Muitos colegas, quando conseguem contornar a falta de condições adequadas de trabalho, não escapam dos efeitos que a paralela pandemia psicológica tem em sua saúde mental.

Sob a perspectiva de quem está nas trincheiras

Trabalho sob pressão, decisões rápidas, improviso, condições de trabalho deficitárias... Essa é a realidade da maioria dos profissionais que atuam na saúde no Brasil e muitos deles já se acostumaram com isso.

No entanto, fomos todos pegos de surpresa pela infecção de escala mundial provocada pelo vírus SARS-CoV-2. E, de uma forma ainda improvisada, a pressão, as decisões, as condições precárias de trabalho, enfim, todos os esforços dos profissionais da área de saúde foram voltados para minimizar os danos nos pacientes e garantir a saúde da população.

Mas esses profissionais foram esquecidos...

Muito mais do que condições dignas e seguras para exercerem sua função, nossos colegas foram privados de sua humanidade em nome de sua força de trabalho. Independentemente se a saúde física será impactada pela COVID-19, a saúde mental parece não escapar dos desgaste psicológico causado pela pandemia.

Essa "tal" saúde mental, que é quase sempre tão negligenciada, nunca foi tão pouco abstrata (como alguns costumam julgar em tom jocoso). Porém, os desfechos nada invisíveis têm acompanhado esses profissionais para fora do ambiente de trabalho e abalado sua estrutura psíquica e fisiológica.

Em uma das poucas pesquisas feitas sobre esse tema até agora, dos 1.257 médicos ou enfermeiros avaliados em regiões chinesas (incluindo Wuhan), cerca de 70% relataram estar estressados e mais de 44% reportaram sintomas de ansiedade ou depressão [1].

Já na Itália, foram observados sintomas de estresse pós-traumático secundário em staffs devido à alta carga de trabalho e quantidade limitada de equipamentos de proteção individual (EPI). Além disso, foram relatadas situações de conflito e de preconceito por parte de outros profissionais em relação aos que estão na linha de frente, pois têm alta probabilidade de estarem contaminados [2].

De modo geral, de acordo com publicações recentes no Journal of the American Medical Association, as maiores causas de estresse entre profissionais de saúde atuando durante a pandemia são [3, 4]:

  • tensão emocional e exaustão física devido ao grande número de pacientes graves;

  • preocupação com colegas de trabalho, que também podem adoecer ou morrer de COVID-19;

  • acesso limitado a EPIs;

  • difícil acesso rápido aos testes disponíveis, caso desenvolvam COVID-19 e precisem ser isolados;

  • incerteza se a organização onde trabalham dará suporte a eles e à família, seja por terem se infectado, seja pelo aumento da carga horária de trabalho;

  • preocupação com familiares que possam ser infectados pelos próprios profissionais devido à exposição no local de trabalho;

  • diminuição no número de ventiladores e outros equipamentos críticos;

  • ansiedade devido à crescente carga de trabalho e por assumir funções clínicas pouco familiares;

  • falta de comunicação quanto às atualizações da doença;

  • acesso limitado a serviços de saúde mental para lidar com ansiedade e depressão.

Percebeu que dos motivos acima menos da metade representa preocupação dos profissionais com eles mesmos? Pois bem, esse efeito Florence Nightingale, mais comum em enfermeiros, leva os profissionais a ignorarem sua própria saúde em função de sua responsabilidade no cuidado do outro.

No hospital chinês Second Xiangya, por exemplo, apesar dos sinais de irritabilidade e de estresse psicológico, alguns enfermeiros se recusaram a participar de um programa de assistência psicológica oferecida pelo hospital alegando não terem nenhum tipo de problema. Segundo funcionários desse hospital, não há necessidade de intervenção psicológica, apenas mais horas de sono e EPIs [5].

Como a pandemia atingiu primeiramente países asiáticos, europeus e os EUA, muitos dos estudos já publicados se baseiam na realidade desses países e de seus sistemas de saúde.

E no Brasil, como estamos?

Neste momento, há trabalhos em andamento para delinear um panorama de como a saúde mental dos profissionais de saúde brasileiros está sendo afetada pela pandemia. Porém, ainda que eu tivesse posse de dados quantitativos, preferiria humanizar um pouco mais a discussão e trazer relatos de alguns desses profissionais ao invés de apenas estatísticas. Por uma questão de privacidade e por solicitação dos entrevistados, serão usados nomes fictícios nos depoimentos a seguir. 

Vinícius, fisioterapeuta de um hospital público na região norte fluminense, trabalha em contato direto com pacientes infectados. Ele começou a apresentar os primeiros sintomas cerca de duas semanas após o início do isolamento oficial no Rio de Janeiro, até que veio a confirmação do diagnóstico de COVID-19. Apesar de não ter desenvolvido os sintomas respiratórios graves, a maior preocupação de Vinícius é o medo de morrer e de colocar sua esposa e filhos em risco, já que está se recuperando em casa.

Roberta e Carla são médicas residentes em hospitais públicos, mas também trabalham em hospitais privados no Rio de Janeiro. Roberta perdeu um colega técnico de enfermagem na semana passada, enquanto Carla teve uma colega médica entubada nesta semana. Somando-se às más condições para trabalhar e dormir no hospital e à sensação de insegurança, os outros profissionais estão com os nervos à flor da pele, principalmente devido à carga de trabalho. Carla acrescenta que "O medo das perdas é enorme...".

Já a assistente social Maria, que trabalha em um hospital público de Natal, no Rio Grande do Norte, afirma que, mesmo não tendo contato direto com os pacientes, ela se sente sobrecarregada com as demandas deles e de suas famílias. Além disso, a falta de EPIs em sua unidade motivou essa profissional e seus colegas a produzirem máscaras próprias seguindo um tutorial na internet. Mais que isso, a fabricação manual desses EPIs tem tido papel terapêutico para os envolvidos e suprido a necessidade de proteção das comunidades no entorno. Maria diz ainda se sentir dominada pelo medo de sair de casa:

"Me sinto acuada em casa, com uma sensação imensa de impotência."

O que está sendo feito?

Na esfera individual, a maioria dos entrevistados tem lidado com o estresse e com o medo lançando mão da meditação, de exercícios físicos e de psicoterapia. Contudo, apesar de haver a intenção em manter tais práticas na rotina, alguns relataram fadiga física e cansaço mental justamente em função do estresse no ambiente de trabalho.

Além disso, diversos grupos de profissionais de saúde mental em diversas regiões brasileiras, como DF, MG, RJ, uniram-se voluntariamente para oferecer atendimento psiquiátrico/psicológico [6-9]. As consultas podem ser feitas desde aplicativos de comunicação usuais até sistemas de telemedicina que exigem certificação digital para emissão de receitas. Além disso, alguns dos atendimentos podem ser feitos até mesmo em outros idiomas, como inglês, espanhol e francês, visando a alcançar profissionais ou familiares oriundos de ou residentes em outros países.

Já no âmbito institucional, muitos hospitais públicos ou privados ao redor do mundo tomaram a iniciativa de dar suporte psicológico a pacientes e aos profissionais da casa. Em diversos hospitais nos EUA, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais prontamente se organizaram para oferecer aconselhamento e suporte psicoterápico remoto para os colegas, não apenas médicos e enfermeiros, mas também da equipe de limpeza e manutenção. A psiquiatra americana Marra Ackerman acrescenta [10]:

"O nosso objetivo agora é dar suporte a todos e de todas as formas possíveis. [...] Estamos juntos nisso e vamos chegar juntos ao final."

Nessa mesma linha, a Dra. Julia Fadiño e a psicóloga Priscila Casemiro coordenam um programa de atenção psiquiátrica e psicológica aos profissionais que estão atuando no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). No projeto, a triagem é realizada remotamente por alunos de medicina voluntários e os colaboradores são encaminhados para o profissional de saúde mental adequado de plantão. Alguns dos profissionais atendidos disseram se sentir muito bem acolhidos e elogiaram a rapidez na intervenção.

Compaixão e respeito: para paciente e para cuidador

Exercer uma profissão que lida com questões humanas complexas requer empatia, mas muitos de nós ainda aliamos a isso o sentimento de compaixão. Paradoxalmente, ao longo da faculdade somos estimulados a  equilibrar a postura empática com certo desapego, com um olhar mais "blindado" em relação ao sofrimento alheio. O objetivo não é necessariamente desumanizar o profissional (nem o paciente, principalmente), mas treiná-lo para não deixar que os sentimentos ofusquem as decisões técnicas que podem salvar a vida de alguém.

Nesse processo, muitos acabam se esquecendo de si mesmos, da autocompaixão. Pacientes, amigos e familiares podem se esquecer de que aquele profissional também é frágil, enfrenta perdas e sofre por elas, cobra-se severamente por não ter sido melhor, ainda que pareça o oposto.

Não são raras as vezes que ouço comentários críticos em relação à postura soberba de alguns profissionais, principalmente de médicos. Contudo, pode acreditar que esta pandemia veio trazer humildade e reflexão a todos. Percebemos o quão limitados somos e o poder que míseros 125 nanômetros está tendo sobre nossa espécie. Não há como sermos os mesmos depois de tudo isso. Nossa geração não conhecerá um "depois de tudo isso", sempre lembraremos do que vivemos.

É importante lembrar que os sistemas de saúde não se mobilizaram unicamente em função da COVID-19. Crianças continuam nascendo, acidentes seguem acontecendo, pessoas continuam infartando, pacientes com quadros graves ou doenças crônicas precisam ser acompanhados. Ou seja, além de atender às demandas já existentes, a rotina já estressante precisou ser conciliada de supetão com uma pressão nunca antes sentida.

Mas temos uns aos outros! E não apenas colegas ajudando colegas, mas governos, instituições e a população também fazendo a sua parte. Não quero ser blasé, mas a frase "cuidar de quem cuida de nós" nunca se fez tão verdadeira.

Urge que instituições públicas e privadas sejam pressionadas a oferecer condições adequadas e seguras de trabalho e dar suporte psicológico para os profissionais de saúde e de seus familiares. Pagar hora-extra, quando isso acontece, não é suficiente!

E se você faz parte da população em geral, também pode contribuir e evitar a sobrecarga do sistema de saúde. Se não é trabalhador essencial, #FiqueEmCasa e só saia em casos de extrema necessidade. Busque ajuda médica apenas se os sintomas se agravarem, assim você não expõe outras pessoas ao vírus em vão e nem se contamina na ida ao serviço de saúde caso não esteja de fato infectado(a). Use máscara, mesmo não sendo cirúrgica ou N95! Na falta dos EPIs "ideais", alguma proteção é melhor que nenhuma. E, por favor, verifique se a informação que você pretende compartilhar nas suas redes vem de fontes confiáveis e tem sólida base científica. Na dúvida, evite! Desinformação também coloca vidas em risco.

Encerro com a síntese feita por pesquisadores da Stanford University e da Icahn School of Medicine. Organizando as principais razões de angústia e ansiedade dos profissionais de saúde, no final das contas tudo o que eles querem é [4]:

"Ouçam-me, protejam-me, preparem-me, apoiem-me e cuidem de mim".

 

Referências

  1. LAI, Jianbo et al. Factors associated with mental health outcomes among health care workers exposed to Coronavirus disease 2019. JAMA network open, v. 3, n. 3, p. e203976-e203976, 2020.
  2. MONTEMURRO, Nicola. The emotional impact of COVID-19: from medical staff to common people. Brain, behavior, and immunity, 2020.
  3. AYANIAN, John Z. Mental Health Needs of Health Care Workers Providing Frontline COVID-19 Care. In: JAMA Health Forum. American Medical Association, 2020. p. e200397-e200397.
  4. SHANAFELT, Tait; RIPP, Jonathan; TROCKEL, Mickey. Understanding and Addressing Sources of Anxiety Among Health Care Professionals During the COVID-19 Pandemic. JAMA, 2020.
  5. CHEN, Qiongni et al. Mental health care for medical staff in China during the COVID-19 outbreak. The Lancet Psychiatry, v. 7, n. 4, p. e15-e16, 2020.
  6. Rede de Apoio Psicológico. Disponível em: https://www.rededeapoiopsicologico.org.br/. Acesso em 15 de abril de 2020.
  7. G1. Iniciativa convoca psicólogos voluntários para dar assistência a profissionais de saúde no DF; veja como participar. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/03/30/iniciativa-convoca-psicologos-voluntarios-para-dar-assistencia-a-profissionais-de-saude-no-df-veja-como-participar.ghtml. Acesso em: 16 de abril de 2020.
  8. G1. Psicólogos oferecem atendimento online e gratuito a profissionais que atuam no combate ao coronavírus. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2020/04/04/psicologos-oferecem-atendimento-online-e-gratuito-a-profissionais-que-atuam-no-combate-ao-coronavirus.ghtml. Acesso em: 16 de abril de 2020.
  9. G1. Psicólogos do RJ fazem atendimento virtual voluntário durante a pandemia do novo coronavírus; veja lista. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/06/veja-uma-lista-de-psicologos-que-fazem-atendimento-virtual-durante-a-pandemia.ghtml. Acesso em: 16 de abril de 2020.
  10. APA. Psychiatrists Respond to MH Needs of Patients, Frontline COVID-19 Workers. Psychiatric News. Disponível em: https://psychnews.psychiatryonline.org/doi/10.1176/appi.pn.2020.4b27. Acesso em 14 de abril de 2020.

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