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Saúde e Espiritualidade: o que sabemos até agora?

Saúde e Espiritualidade: o que sabemos até agora?
Felipe Dalvi
jun. 14 - 9 min de leitura
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A Ciência pode "provar" a espiritualidade? Espiritualidade e religião são a mesma coisa? É possível medir como a espiritualidade influencia nossa saúde? Como ela pode impactar na prevenção e nos desfechos de doenças? 

 

Uma reflexão inicial

Já ouviu falar daqueles apitos cujo som está numa frequência acima da que nossos ouvidos conseguem detectar e que apenas cães conseguem ouvir? Alguns aplicativos são capazes de gerar esses sons e certos equipamentos permitem visualizar essas ondas. Ou seja, mesmo que não consigamos ouvir, o sinal está lá.

Também já te contaram que formigas "enxergam" em duas dimensões (ou seja, como se tudo fosse plano), com muito pouca ou nenhuma noção de profundidade? Entretanto, para nós que conseguimos visualizar altura, largura e profundidade, chega a ser ridículo pensar em um mundo que não seja tridimensional. Nosso raciocínio até permite que tomemos o tempo como uma quarta dimensão, mas ainda estaríamos muito aquém de visualizar as, pelo menos, dez dimensões que os físicos teóricos dizem existir.

E o que isso tudo tem a ver com espiritualidade? Bem, há não muito tempo, experiências espirituais, por não serem compreendidas sob o ponto de vista científico, poderiam ser consideradas doenças mentais ou vice-versa. Hoje, com o avanço das pesquisas, das técnicas de imagem e processamento de sinais cerebrais, já há uma distinção bem melhor entre ambas.

Apesar do olhar sobre a espiritualidade estar mudando, acho importante pontuar essa questão de forma geral: é vital que mantenhamos um olhar humilde para entender que o método científico é apenas um paradigma que tenta explicar os fenômenos que nos permeiam. Eventualmente, ele pode não ter os recursos para explicar. Ou seja, acho bem complicado dizer que algo não é ou não existe apenas porque (ainda) não conseguimos ver ou medir.

Já desde 1988, entretanto, a OMS incluiu a dimensão espiritual no conceito de saúde, independente de crença ou prática religiosa, reconhecendo a importância da espiritualidade para a qualidade de vida dos indivíduos [1]. Dessa forma, vale a pena trazermos informações que possam elucidar o que se entende por espiritualidade e como ela está relacionada à nossa saúde.

 

Espiritualidade não é religiosidade

Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, os termos espiritualidade e religião têm sido distinguidos por muitos autores.

A religião pode ser definida como "um sistema estabelecido de símbolos, crenças, rituais e textos compartilhados por uma comunidade de fé" [2]. Além disso, a religião inclui comportamentos e doutrinas que, de alguma forma, derivam de tradições desenvolvidas por comunidades ao longo de anos [3]. Assim, fica fácil entender que a religião é influenciada por aspectos culturais e morais de um determinado grupo (instituições) em um período de tempo.

Já a espiritualidade, de acordo com o médico Harold Koenig [4],

"é uma busca pessoal pelo entendimento de questões sobre a vida, seu significado e relações com o sagrado e transcendente, que pode ou não estar relacionada a propostas de uma determinada religião."

Entenda-se por "transcendente" algo que está fora do eu, mas que, ao mesmo tempo, faz parte dele. Uma experiência de contemplação que leva a um novo estado de consciência. A isso você pode chamar de Deus, Alá, Buda, Ogum, simplesmente Força Superior ou, em último caso, A Verdade. Seja como for, a espiritualidade não depende de valores morais, não se trata de sintomas psicóticos patológicos e, embora abranja a religião, não está limitada a ela.

Nesse sentido, veja que até mesmo ateus ou agnósticos podem desenvolver sua espiritualidade e desfrutar de experiências consideradas espirituais sem estarem ligados a um tipo de religião. Segundo o neurocientista e ateu, Sam Harris:

“A espiritualidade deve ser distinta da religião. Pessoas de todos os credos e aquelas que não têm fé alguma têm os mesmos tipos de experiências espirituais. Um princípio mais profundo deve estar em funcionamento.” 

De acordo com Harris, isso é tão verdade que tais estados de consciência, de epifania, podem ser alcançados por meditação, drogas psicodélicas (embora ele não recomende, devido aos efeitos adversos), dentre outros. Para ele, não faz sentido que princípios que deveriam ser universais, como o amor incondicional, estejam atreladas à religião [5].

 

O que a Ciência tem a dizer sobre isso?

Como a espiritualidade está associada a estados mentais, a sensações e emoções, é natural que a neurociência se interessasse pelo tema. Há um número crescente de grupos de pesquisa e de artigos estudando os componentes biológicos e psicológicos relacionados à espiritualidade. E no âmbito cerebral, os achados vão muito além da famosa glândula pineal.

Em uma revisão recente, pesquisadores encontraram trabalhos de ressonância magnética funcional (fMRI) mostrando que durante estados de experiência mística (meditação e oração), freiras carmelitas tinham múltiplas regiões cerebrais ativadas [6].

Outros trabalhos mostraram que, ao julgar um determinado tema ou dilemas morais, há diferença entre as áreas cerebrais ativadas em pessoas religiosas quando comparadas a não-religiosas, ou seja, nossas crenças impactam em nossas decisões.

Ademais, também foi mostrado que indivíduos com práticas espirituais regulares apresentam melhor desempenho em atividades com neurofeedback (uma espécie de treinamento autorregulatório que tem por objetivo melhorar aspectos cognitivos e comportamentais). Segundo os pesquisadores, esses indivíduos teriam maior facilidade em se concentrar nas tarefas do sistema de avaliação.

Para além dos marcadores biológicos, há quase 40 anos instrumentos e escalas são utilizados em áreas como medicina, enfermagem, psicologia e teologia para avaliar os efeitos da espiritualidade no bem-estar e na saúde humana.

O Meaning In Life Scale e o Herth Hope Index, por exemplo, avaliam o senso de temporalidade, de perspectiva de futuro e o valor da vida em pacientes terminais ou com doenças crônicas [7, 8]. Já o Index of Core Spiritual Experiences (INSPIRIT) é uma escala para avaliação espiritual em geral, muito utilizada em estudos que medem a influência de técnicas de meditação na espiritualidade [9].

E as pesquisas sobre espiritualidade e saúde não param por aí: há estudos mostrando redução na mortalidade geral em pessoas que frequentam locais religiosos pelo menos uma vez por semana [10]; melhores desfechos cardiovasculares (menos casos de hipertensão, menor progressão de doença coronariana) [3]; melhor resposta a tratamentos quimioterápicos [11]; e espiritualidade como fator de proteção contra depressão e suicídio [12].

Considerações finais

O Brasil é um país conhecido por ser muito religioso, mas a nossa discussão para ampliar esse entendimento para o campo da espiritualidade ainda está engatinhando. Particularmente neste momento político, o país vive uma polarização que, sendo bem generoso, acaba tangenciando a esfera religiosa.

Como ainda somos relativamente incipientes em separar religião de espiritualidade, corremos o risco de colocar tudo no mesmo saco e abrir mão dos benefícios que o "contato" com essa nossa dimensão pode trazer à nossa saúde.

Felizmente, os recém-formados profissionais de saúde estão indo para o mercado conscientes da importância da espiritualidade na qualidade de vida de seus pacientes. As pesquisas são promissoras e fornecerão bases científicas ainda mais sólidas para conduzir as nossas práticas e estimular os pacientes interessados a cultivar esse aspecto em suas vidas.

Ainda há muito para desvendar, preconceitos a vencer, formações mais específicas a oferecer, mas certamente estamos no caminho para transcender essas barreiras.


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Referências

1. OLIVEIRA, Márcia Regina de; JUNGES, José Roque. Saúde mental e espiritualidade/religiosidade: a visão de psicólogos. Estudos de Psicologia (Natal), v. 17, n. 3, p. 469-476, 2012.

2. HO, Jim Q. et al. Spiritual care in the intensive care unit: a narrative review. Journal of intensive care medicine, v. 33, n. 5, p. 279-287, 2018.

3. LUCCHESE, Fernando A.; KOENIG, Harold G. Religion, spirituality and cardiovascular disease: research, clinical implications, and opportunities in Brazil. Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery, v. 28, n. 1, p. 103-128, 2013.

4. KOENIG, Harold G. Religion, spirituality, and medicine: how are they related and what does it mean?. In: Mayo Clinic Proceedings. Elsevier, 2001. p. 1189-1191.

5. VEJA. A Espiritualidade sem Deus. Disponível em: https://veja.abril.com.br/ciencia/a-espiritualidade-sem-deus/ Acesso em 07 de maio de 2020.

6. RIM, James I. et al. Current Understanding of Religion, Spirituality, and Their Neurobiological Correlates. Harvard review of psychiatry, v. 27, n. 5, p. 303-316, 2019.

7. WARNER, Stephanie C.; WILLIAMS, J. Ivan. The Meaning in Life Scale: determining the reliability and validity of a measure. Journal of chronic diseases, v. 40, n. 6, p. 503-512, 1987.

8. HERTH, Kaye. Fostering hope in terminally‐ill people. Journal of advanced nursing, v. 15, n. 11, p. 1250-1259, 1990.

9. KASS, Jared D. et al. Health outcomes and a new index of spiritual experience. Journal for the scientific study of religion, p. 203-211, 1991.

10. LI, Shanshan et al. Association of religious service attendance with mortality among women. JAMA internal medicine, v. 176, n. 6, p. 777-785, 2016.

11. LISSONI, Paolo et al. A spiritual approach in the treatment of cancer: relation between faith score and response to chemotherapy in advanced non-small cell lung cancer patients. in vivo, v. 22, n. 5, p. 577-581, 2008.

12. BONELLI, Raphael et al. Religious and spiritual factors in depression: review and integration of the research. Depression research and treatment, v. 2012, 2012.

 


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