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Super Irresponsável: estancando o sensacionalismo leviano

Super Irresponsável: estancando o sensacionalismo leviano
Gustavo Hirt
jun. 30 - 10 min de leitura
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Hoje cedo vi um post de um colega de faculdade criticando a Revista Superinteressante pela capa de sua edição de Julho/2018 – “ERRO MÉDICO” – na frente de um estetoscópio no corpo de uma cobra negra “pronta pro ataque” – como sugeriu ele. Senti, do mesmo jeito, um forte sensacionalismo da capa, mas fiquei de certa forma feliz pelo assunto escolhido. Então comecei a refletir:

"Erro médico ou, melhor dizendo, erro na assistência é uma importante causa de morbimortalidade, aqui no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Infelizmente, discutir o erro assistencial é, de alguma maneira, “proibido”, portanto, é extremamente importante falar sobre isso no meio assistencial e também na comunidade em geral."

Fui explicar, sem ter lido o artigo assim como meu colega, que aquela não era uma capa a ser xingada, pois, independente de sua agressividade, a Revista teria como nobre fim trazer à tona uma discussão relevante. Depois, eu li.

O texto começa, nas primeiras linhas, muito similar a diversas publicações sobre erro: cria um paralelo com a aviação, um setor de alto risco que entendeu, anos antes, a necessidade se tornar altamente confiável e buscar segurança como prioridade estratégica.

Infelizmente, 13 linhas depois começa o pavor e a irresponsabilidade – reitero, quanta irresponsabilidade!

Entre dados maldosamente arquitetados, tentativas de associar informações a trabalhos que não abordam o assunto e comentários inoportunos de alguns profissionais que pouco sabem segurança do paciente, os jornalistas responsáveis tentam criar uma ilusão de médico-monstro, que erra deliberadamente. A publicação esquece que o contexto da atividade é muito mais complexo. Negligencia que as falhas e erros acontecem em meio a um ambiente utópico que não aceita nada menos que a perfeição.

Erro médico sempre foi pouco discutido. Entretanto, a partir do lançamento do relatório To Err Is Human[1], em 1999, que trouxe informações referentes às mortes por erro médico em hospitais dos EUA (44 a 98 mil pacientes/ano), o número de publicações sobre o assunto praticamente quadruplicou. Essa informação é uma extrapolação concisa dos dados do Harvard Medical Practice Study[2,3], desenvolvido uma década antes. Em 2016, um estudo[4] da Johns Hopkins University publicado no British Medical Journal sugere que erro médico seria a terceira causa de morte nos EUA, contudo, experts julgam[5] essa extrapolação inconsistente.

Notem que, até agora, estamos falando de publicações em duas das mais renomadas revistas médicas com altíssimo fator de impacto.

A reportagem da Superinteressante traz, além do já refutado estudo[4] de 2016, a informação de outro estudo[6] que estima que, no Brasil, morrem 434 mil pessoas por ano em função de erro médico. Faço questão de citar a parte desse trabalho que aborda isso: Somando-se as estimativas de óbitos extrapoladas para o número de internações SUS e saúde privada no Brasil em 2015, temos o mínimo de 104.187 a 434.112 possíveis óbitos associados a eventos adversos hospitalares/ano.” (COUTO, RC 2016). Meia informação, caro autor, não basta. O que, contudo, me surpreende mais é a audácia da matéria em afirmar que “O número maior, infelizmente, é o mais preciso” quando a verdade, seja em termos de publicações[1,2,3,5,7], seja em consenso[8] de experts no assunto, é que os dados mais precisos são os menores.

Se não fosse suficientemente vil, a publicação traz um determinado parágrafo que sugere que um estudo elaborado por pesquisadores da Harvard [9]corrobora a primeira afirmativa daquela passagem “O uso exagerado de remédios é outra tendência clara”, quando na verdade o trabalho nem aborda essa perspectiva.

Depois de chamar atenção com informações incompletas, associações inexistentes e mentirosas, a matéria encontra, finalmente, as causas para o erro médico.

De maneira surpreendente, depois de um confete de excertos de publicações sérias que pouco se relacionavam, os jornalistas responsáveis chegaram aos fatores reais que se associam a erros médicos: a carga de trabalho excessiva. Depois de demonstrarem que jornalistas da revista Super Interessante são incapazes de correlacionar diferentes publicações científicas, as longas horas de trabalho são condizentes com o erro profissional.

Inquestionável que sobrecarga é um dos fatores mais importantes na concepção dos erros, pois impacta diretamente na realização de tarefas automáticas, aumentando a chance da ocorrência de deslizes, que são responsáveis pela maioria dos eventos adversos evitáveis. Afirmar que outra grande causa de erro é o mau uso das ferramentas da medicina é sugerir que os médicos erram conscientemente e por serem negligentes, o que na imensa maioria dos casos também não é verdade [7,10].

Após uma extensa reportagem, a matéria toca em outro ponto interessante, porém de forma equivocada. A formação deficiente e falta de estrutura em função do aumento sem controle das escolas de medicina no Brasil não pode generalizada como principal promotor de erros.

Entre as coisas que mais me frustraram ao ler o texto, essa foi, sem dúvida, a mais imperdoável. É praticamente inacreditável que alguém seja capaz de usurpar de uma das poucas oportunidades de abordar e esclarecer esse assunto em um veículo de boa circulação para bradar de maneira egoísta rancores políticos para criticar medidas que, de maneira alguma, não são sequer próximas da culpa da situação por trás da origem dos erros assistenciais. Afirmar que a criação de novas faculdades de medicina nos últimos anos é a principal causa de erros médicos é não menos que uma falta total de comprometimento com a melhoria da qualidade da assistência a saúde e com a segurança do paciente em favor de interesses políticos egoístas. Quem dera eu afirmar exatamente qual a principal ou principais causas dos erros na assistência, mas não posso deixar de afirmar que ela não passa nem perto dessa barbárie que foi citada.

De maneira geral, a maior parte das publicações sugerem que as causas dos erros na assistência passam pela formação que exige a perfeição dos atos sem aceitar e entender a falibilidade de suas condições humanas. Isso proporciona a existência de uma cultura punitiva que não contribui para a prevenção de erros. James Reason[7,8] propõe que o profissional apontado como "culpado pelo erro" é, na maior parte, a segunda vítima, pois a maioria dos erros é resultado de falhas em várias camadas do processo. Dano ao paciente dificilmente ocorre pela falha de um só profissional.

Ao mesmo tempo que se exige uma humanização cada vez maior da medicina, não se reconhece que muitas vezes o profissional erra por simplesmente ser humano.

Finalmente, pontuo a falha e o atraso em estabelecer uma cultura de segurança, que defina compromisso, em todos os níveis hierárquicos, de abordar a segurança como uma prioridade estratégica. Esta é uma maneira de buscar continuamente minimizar a probabilidade de erros e fortalecer os meios de identificação precoce, que previnam as falhas de causar dano aos pacientes[7,8,11,12].

A revista apresenta um pacote completo, maldoso e irresponsavelmente configurado, aparentando uma tentativa de deturpar a imagem do médico e criar uma ilusão de monstro e vilão.

Atitudes irresponsáveis como a abordagem dessa matéria, fruto de estudo e investigação superficiais e levianos, têm grande chance de inflar ainda mais a resistência ao reconhecimento do problema e, principalmente, ao debate sério e conciso com o intuito de buscar soluções. Entretanto, é imperativo que os médicos parem de resguardarem-se atrás de justificativas como “ataques a classe” para evitar discutir, de fato, sobre erros e falhas na assistência.

James Conway, um senior fellow do Institute for Healthcare Improvement, pontuou muito bem a situação quando disse que nossos sistemas [de saúde] são muito complexos para esperarmos meramente que pessoas extraordinárias desempenhem suas tarefas perfeitamente, cem por cento do tempo. Nós, como líderes [e os médicos são, inerentemente, líderes na saúde] temos a responsabilidade de pôr em prática sistemas que garantam a segurança. É nosso dever, moral e ético, minimizar diariamente a chance de ocorrência de erros, garantir uma prática segura e melhorar constantemente a saúde.

Referências:

  1. Kohn L, Corrigan J, Donaldson M, eds. To Err Is Human: Building a Safer Health System. Committee on Quality of Health Care in America, Institute of Medicine. Washington, DC: National Academies Press; 1999.
  2. Brennan TA, Leape LL, Laird NM, et al. Incidence of adverse events and negligence in hospitalized patients. Resuls of the Harvard Medical Practice Study I. N Engl J Med 1991;324:370-376.
  3. Leape LL, Brennan TA, Laird N, et al. The nature of adverse events and negligence in hospitalized patients. Results of the Harvard Medical Practice Study II. N Engl J Med 1991;324:377-384.
  4. Makary MA, Daniel M. Medical error – the third leading cause of death in the US. BMJ 2016;353:i2139.
  5. Shojania KG, Dixon-Woods M. Estimating deaths due to medical error: the ongoing controversy and why it matters. BMJ Qual Saf 2017;26:423-428.
  6. Couto RC, Pedrosa TMG, Rosa MB. Erros acontecem: construindo um sistema de saúde mais seguro. Faculdade de Medicina Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG: Instituto de Estudos de Saúde Suplementar; 2016.
  7. Wachter RM, Gupta K. Understanding Patient Safety. Third edition. New York, NY: McGraw-Hill Education, 2018.
  8. National Patient Safety Foundation. Free From Harm: Accelerating Patient Safety Improvement Fifteen Years afet To Err Is Human. Boston, MA. 2015.
  9. Nanji KC, Patel A, Bates DW. Evaluation of Perioperative Medication Errors and Adverse Drug Events. Anesthesiology. 2016;124(1):25-34.
  10. Leape LL. Error in medicine. JAMA 1994;272:23.
  11. Reason JT. Human Error. New York, NY: Cambridge University Press; 1990.
  12. Reason JT. Managing the Risk of Organizational Accidents. Aldershot, Hampshire, England: Ashgate; 1998.

 


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