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Preprints: heróis ou vilões na corrida às cegas das pesquisas sobre a COVID-19?

Preprints: heróis ou vilões na corrida às cegas das pesquisas sobre a COVID-19?
Isadora Mesadri
jan. 28 - 7 min de leitura
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O medo do desconhecido, a aflição de não saber como conduzir o tratamento e a frustração de não obter sucesso frente a uma nova doença fizeram com que cientistas, no início da pandemia de COVID-19, entrassem em uma corrida às cegas por informação e conhecimento. A partir disso, a qualquer mínima evidência de achados científicos, os dados eram divulgados em pré-publicações (também conhecidas como preprints), as quais não são revisadas por pares e por isso são de evidência científica duvidável. Assim, nos primeiros 4 meses de pandemia, cerca de um terço dos artigos veiculados foram pré-publicações(1).

Segundo a epidemiologista Maria Van Kerkhove (2), no início da pandemia as pré-publicações eram poucas e por isso gerenciáveis, entretanto, rapidamente tais divulgações  se tornaram abundantes e descontroláveis. À medida que a pandemia foi avançando e que novos artigos eram disponibilizados, Van Kerkhove e sua equipe começaram a usar as pré-publicações como ponto de partida para antecipar questões que poderiam corroborar para novas descobertas. 

Frente a isso, é possível citar alguns exemplos de preprints que desencadearam uma revolução científica benéfica para a sociedade. Como o artigo que demonstrou que a maioria dos surtos do novo patógeno poderia ser contida se mais de 70% dos contatos próximos fossem rastreados e isolados(3). E outro que apresentou que a infecciosidade do SARS-CoV-2 atingiu o pico até três dias antes do início dos sintomas(4). Gabriel M Leung, que trabalha na Universidade de Hong Kong, explica que tais publicações mudaram a quarentena e as políticas de rastreamento de contato para muitos países. Dessa maneira, esses preprints foram usados positivamente, uma vez que colaboraram no avanço das pesquisas randomizadas e assim, aceleraram as políticas públicas que ajudaram a controlar a pandemia (2). 

Contudo, como Peter Horby, médico britânico e infecto-epidemiologista, opinou, a velocidade de divulgação das pré-publicações é uma faca de 2 gumes(2). Da mesma maneira que pode ser usada para instigar cientistas a buscar mais evidências sobre o que foi divulgado, pode ser disseminada como verdade absoluta antes de ser criticamente revisada. Um desses casos negativos, foi a pré-publicação em abril de 2020 de Carlos Chaccour, pesquisador sobre Malária  no Instituto de Saúde Global em Barcelona, na Espanha. No estudo observacional, excluído posteriormente devido ao uso de dados irreais da Surgisphere database (5), Chaccour sugeriu que a Ivermectina melhorou a sobrevida de pacientes infectados com a COVID-19. Porém, mesmo depois de excluído, o artigo foi publicado em um white paper pelo governo peruano, o qual recomendou o uso da droga para o tratamento do SARS-CoV-2. Uma semana depois, Bolívia, Venezuela, Índia, África e Slovakia seguiram o exemplo do Peru e adotaram o mesmo tratamento como política nacional. 

No Brasil, apesar da divulgação da nota técnica sobre a falta de evidência científica no uso da Ivermectina em março de 2020 (6) e da nota de esclarecimento da Anvisa 2 meses depois da pré-publicação de Chaccour (7), a venda do antiparasitário cresceu 857%, o que equivale a mais de 81 milhões de unidades, nos 12 meses seguintes ao primeiro registro da doença no país. Em meio ao desespero e medo do público frente a doença do coronavírus, indivíduos de profissões variáveis e até médicos, disseminavam as informações dos preprints como verdade, anulando a criticidade da medicina baseada em evidência, a fim de reafirmarem suas ideologias e obter vantagens em cima de uma falsa esperança para a sociedade e do negacionismo a ciência da medicina. 

Entretanto, a medicina baseada em evidências também foi prejudicada e se tornou duvidável durante a pandemia. Devido ao alto fluxo de publicações e a necessidade de respostas rápidas, houve aumento da deficiência da revisão por pares e o uso de dados irreais e duplicados em preprints em meta-análises, prejudicando a ciência e a prática médica. Apesar de retirados da internet após terem seus erros identificados, os preprints podem continuar tendo influência online, uma vez que os servidores das pré-publicações não têm autoridade para retirar periódicos fraudulentos de circulação (2).  

Por fim, a precária discussão dentro da academia sobre qual é a real fonte dos erros publicados prejudica o desenvolvimento e a reformulação de uma boa prática de pesquisa (2).  Além disso, conforme Gowri Gopalakrishna, epidemiologista do Centro Médico da Universidade de Amsterdã, é necessário melhorar a qualidade da pesquisa, com o compartilhamento de dados e etapas, para maior transparência e responsabilidade(2).Do ponto de vista clínico, consoante o  intensivista Andrew Udy, do The Alfred Hospital em Melbourne, os médicos têm a responsabilidade de examinar os dados que sustentam os resultados e usar terapias comprovadas, uma vez que ao usarem informações falsas, imprecisas ou erradas, estarão lesando seus próprios pacientes (2). 

 

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Referências

  1. Article Source: The evolving role of preprints in the dissemination of COVID-19 research and their impact on the science communication landscape Fraser N, Brierley L, Dey G, Polka JK, Pálfy M, et al. (2021) The evolving role of preprints in the dissemination of COVID-19 research and their impact on the science communication landscape. PLOS Biology 19(4): e3000959. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3000959

  2. Watson, C. Rise of the preprint: how rapid data sharing during COVID-19 has changed science forever. Nat Med (2022). https://doi.org/10.1038/s41591-021-01654-6 

  3. Feasibility of controlling 2019-nCoV outbreaks by isolation of cases and contacts Joel Hellewell, Sam Abbott, Amy Gimma, Nikos I Bosse, Christopher I Jarvis, Timothy W Russell, James D Munday, Adam J Kucharski, W John Edmunds, CMMID nCoV working group, Sebastian Funk, Rosalind M Eggo medRxiv 2020.02.08.20021162; doi: https://doi.org/10.1101/2020.02.08.20021162Now published in The Lancet Global Health doi: 10.1016/s2214-109x(20)30074-7

  4. Temporal dynamics in viral shedding and transmissibility of COVID-19 Xi He, Eric HY Lau, Peng Wu, Xilong Deng, Jian Wang, Xinxin Hao, Yiu Chung Lau, Jessica Y Wong, Yujuan Guan, Xinghua Tan, Xiaoneng Mo, Yanqing Chen, Baolin Liao, Weilie Chen, Fengyu Hu, Qing Zhang, Mingqiu Zhong, Yanrong Wu, Lingzhai Zhao, Fuchun Zhang, Benjamin J Cowling, Fang Li, Gabriel M Leung medRxiv 2020.03.15.20036707; doi:https://doi.org/10.1101/2020.03.15.20036707 Now published in Nature Medicine doi: 10.1038/s41591-020-0869-5

  5. Chaccour, C. Ivermectin and COVID-19: How a Flawed Database Shaped the Pandemic Response of Several Latin-American Countries. Barcelona Institute for Global Health. 29 mai 2020. Disponível em https://www.isglobal.org/en/healthisglobal/-/custom-blog-portlet/ivermectin-and-covid-19-how-a-flawed-database-shaped-the-covid-19-response-of-several-latin-american-countries/2877257/0 

  6. Ministério da Saúde . Ivermectina para o tratamento de pacientes com COVID-19. Mar 2021. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/notas-tecnicas/nota-tecnica-ivermectina-covid-19

  7. Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Nota de esclarecimento sobre a ivermectina. 10 Jul 2020. Disponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/nota-de-esclarecimento-sobre-a-ivermectina 

 


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