Em busca de um médico generalista, uma das perguntas que veículos de comunicação mais fazem, assim como os mais velhos sobre os médicos é: “ para onde foi o médico geral? Aquele que sabe de tudo um pouco?”
Médico generalista o que é (erroneamente chamado de “clínico geral”)
É o médico que, na concepção popular, resolve os problemas mais básicos de saúde, possui um nível diagnóstico aceitável, trata a maioria das doenças e tem sapiência em encaminhar ao especialista casos mais complexos. O que de fato é tão valorizado e que é a concepção do médico recém-formado ideal. Toda pessoa com um CRM no Brasil, antes de tudo, é um médico generalista. Pelo menos, isso é o que diz a lei.
Porém, o que se critica muito e inclusive é discussão no meio médico é: Para onde foi esse perfil de médico generalista?
Há um tempo atrás em um encontro de especialistas que fui a mesma pergunta foi feita por um médico de família e comunidade. Ele questionou onde estava o "generalista" e esse espírito de "tratar de tudo que o seu conhecimento em medicina além da especialidade o permitia". Uma oportunidade de reflexão num tempo em que o sistema de saúde, público e suplementar, está a beira do colapso, com a atuação do médico sendo mais do que nunca questionada.
Para respondermos a essa pergunta precisamos, entretanto, pensar em algumas outras questões.
1º: Onde achar um médico generalista?
Médicos generalistas são fáceis de achar. Se você vai até uma unidade básica de saúde, um pronto atendimento ou um pronto socorro, será possível encontrar a maioria deles realizando seus serviços. O generalista está, em sua maioria, na famosa “porta de entrada” do sistema de saúde. Infelizmente, na maior parte das vezes, são locais cheios, desvalorizados e onde geralmente a figura do médico que lá trabalha é desmoralizada.
Já tive a excelente experiência, em condição de generalista, de ouvir de um “gestor” após pedir melhoras em um serviço em que trabalhava: “você é ortopedista? Ginecologista? Fez uma residência em clínica médica? Não? Então quem é você para pedir algo em nosso serviço?”
Existe uma outra classe de generalista, a qual geralmente é formada por médicos especialistas mais antigos e que pela falta de continuidade da tradição de ser um generalista estão sumindo aos poucos. São médicos que, ou mantiveram o espírito generalista ou pela maturidade perceberam que um modelo muito específico não levava a nada. Esses, diga-se de passagem, são raríssimos e os médicos que mais admiro. Nem devem ser levados a frente nessa discussão devido sua raridade e seu contexto (talvez um outro dia).
2º: O médico quer ser “generalista”?
Se conversar com um estudante de medicina nos primeiros anos sobre a função generalista, existe a probabilidade de ouvir uma maioria positiva, seja por ideologia, seja por admirar a figura do profissional que ele idealiza ser.
No entanto, se conversarmos com os estudantes do último ano veremos que a maioria não quer ser. Ao contrário, os internos estudam arduamente em cursinhos preparatórios para justamente passar o mais rápido possível em um concurso de residência.
Primeiro, porque o estudante se espelha na figura do professor dele, um "especialista", seja de forma positiva como um exemplo a ser seguido ou negativa querendo subir na vida e não ser mandado por alguém como ele.
Segundo, porque passam a ver as mazelas do sistema de saúde, o desrespeito e os serviços ruins que lhes aguardam se não fizerem residência, levando-os a enxergarem uma especialização como forma de fuga e de adquirir respeito perante à sociedade. Acabam, por isso, querendo sair da condição de generalista o mais rápido possível. O resgate de espírito generalista, nesse caso, pode ocorrer, mas, geralmente na especialidade com mais maturidade intelectual e financeira, com o tempo de ter poucos pacientes em sua agenda e sua aparência de respeito na sociedade.
Progredindo ao recém-formado, vemos alguém que é um generalista, para o qual sobraram os serviços ruins, os prontos socorros cheios e sem estrutura, ambulatórios com metas absurdas, desvalorização e até mesmo o medo de perder a licença de trabalho se ousar a entrar em algo mais especializado da medicina. Então, para ganhar um pouco mais, ter uma vida mais confortável, mais respeito e principalmente melhores ganhos, acaba indo para a especialização.
Quanto aos mais velhos (não tão velhos quanto os que disse acima) que seguiram o caminho do “generalista” sem especialidade, hoje muitos se arrependem de não terem feito uma especialidade quando jovens, e com a idade sentem a maior demanda e as péssimas condições de trabalho comparadas ao especialista que tem mais conforto com o avançar da idade.
Ter uma especialidade hoje e tratar o paciente de forma mais específica o possível virou sinônimo de status e conforto ao médico.
3º: A população quer realmente um generalista?
Ouvir e comparar a situação são duas coisas distintas. Em serviços onde há atuação de saúde integrada (um assunto que vale outro post) vira um malabarismo a busca por querer um médico que resolva de forma integral. Infelizmente com o próprio apelo da mesma sociedade que clama por uma abordagem fast food onde mais direcionado e “especializado” é melhor. Evitarei comentar os serviços fast food porque já fiz uma consideração que você ver clicando aqui. Em síntese, o sistema se resume em:
Tem dor de cabeça sem sintomas neurológicos? O paciente prefere direto um neurologista.
Está com dor no ombro? Procura o ortopedista.
Tem dor de cabeça e dor no ombro devido a tensão do ambiente de trabalho e do cheque especial? Procura o psiquiatra, o ortopedista e o neurologista.
O que há em comum nestes é que na maioria dos casos o médico generalista e sem especialidade definida diagnóstica, trataria facilmente, com o exame clínico e os complementares adequados, associados com as alterações pertinentes nos hábitos de vida, encaminhando ao especialista apenas se realmente necessário, tendo todo esse processo uma condução ágil, econômica e muito proveitosa na relação médico paciente.
Entretanto, o próprio usuário e o gestor preferem o especialista seja por segurança, seja por uma certa concepção de luxo.
4º: O que há no ramo "especialista" que os médicos generalistas preferem?
Isso também se reflete no ambiente de trabalho do médico generalista. Serviços bons, confortáveis e valorizados, inclusive com a ironia de pedido à "abordagem de generalista" exigem especialização em alguma área. Isso não é culpa ou demérito algum do especialista. De fato o mercado exige especialistas, oferecendo para isso melhores condições.
Especialistas são de porta fechada (incluindo gestão, ambulatórios, consultores e núcleo de apoio de saúde da família) ou pacientes mais “triados” como no caso da ortopedia e da obstetrícia, e, principalmente, ganham mais por esforço igual ou menor do que o generalista. Além disso, o especialista tem mais respeito da sociedade e notoriedade por seus atos, especialmente, aqui no Brasil. Hoje, nota-se nos veículos de mídia, que é difícil uma pessoa com o título ipsis litteris de “médico” se destacar. O profissional vem sempre acompanhado de seu título de especialidade, como cardiologista, geriatra, oncologista, etc.
Repetindo: isso não é demérito algum, todo esse reconhecimento para com a especialidade é mais do que merecida. Se especializar é essencial para o progresso da carreira de um médico e natural a uma pessoa que deseja saber mais sobre o mundo que o rodeia.
5º: O médico pode atuar como generalista?
Se observarmos os pareceres do Conselho Federal de Medicina (CFM), é dito que o ato médico é livre e irrestrito a todos os médicos desde que seguido o bom senso”.
Por exemplo: se você estiver em uma unidade de saúde ambulatorial como generalista, sem estrutura alguma, e tiver um paciente diabético, você não vai esperar um ano sem tratamento para um endocrinologista tratar. Porém, se você generalista, estiver numa capital, não vai arriscar fazer uma cirurgia neurológica eletiva.
Ser generalista significa, em alguns aspectos, estar a sorte na regência pela conveniência da população e seus gestores, do ato médico (cuja lei foi deturpada por interesses políticos alinhados) e da judicialização da medicina.
Ambulatórios cheios, metas absurdas e desmoralização são pontos livres e irrestritos a todos os médicos. Só há algum bônus de ergonomia a mais assim que você sobe um pouco de expertise.
Em termos médicos o espírito generalista entra em coma no primeiro plantão do pronto socorro e vai a óbito no primeiro dia de ambulatório cheio.
Resumindo: os generalistas existem. Todos os médicos são generalistas por formação e natureza, sendo que a maioria começa trabalhando como tal e pela pressão social acabam perdendo esse espírito ao decorrer da carreira.
E me dando o direito de parafrasear para a saúde uma célebre frase sobre luxo do Carnavalesco Joãosinho Trinta: “Generalista é coisa de intelectual, o povo gosta é de especialista.”