Bem-vindos à série "Gabinete de Curiosidades Médicas"! Aqui você vai encontrar fatos curiosos, sombrios ou interessantes sobre a história da medicina e das artes. Prepare-se para um encontro inesperado com médicos, escultores, pintores, filósofos que se unem para contar um pouco das inusitadas intersecções, costuras e remendos entre ciência, medicina e literatura no Século XIX.
Vamos lá?
Como pode ser percebido pelos textos anteriores dessa coluna, o século XIX foi palco das mais diversas peripécias. Entre elas, está uma complexa relação entre a morte, o saber científico e intelectual e o erotismo. Não à toa o Romantismo, com suas visões mórbidas, melancólicas e nostálgicas se desenvolveu nesse período, influenciando as mais diversas áreas da sociedade, incluindo a médica.
Um ótimo exemplo dessa curiosa relação pode ser encontrado no exemplo das bonecas anatômicas, que fizeram sucesso do final do século XVIII até o século XIX. Esses modelos de cera em tamanho humano serviam para auxiliar no aprendizado dos cirurgiões da época e mostravam todos os órgãos do corpo humano em grande detalhe. As peças tinham grande apelo visual e eram feitas com enorme qualidade técnica na reprodução dos órgãos internos. Além disso, eram belas, com expressões faciais lânguidas, com verossimilhança na textura da pele.
Eram geralmente dispostas em posições quase sedutoras e nas posições em que se encontravam faziam eco ao ideal de beleza feminina da pintura renascentista. Para aumentar ainda mais a atração, elas eram vestidas com roupas luxuosas, joias e tinham cílios, pelos pubianos e olhos de vidro. As roupas eram lentamente despidas pelos cirurgiões e estudantes, quase como em um ritual sedutor que fazia parte da ideia original (não coincidentemente elas levavam o nome da deusa do amor e da beleza).
“A Vênus anatômica de cera em tamanho real e anatomicamente correta foi o auge da perfeição artística e pedagógica. Com o levantamento de seu peitoral, ela poderia ser dissecada e remontada em camadas, revelando o corpo feminino ideal de sua época”, explica Joanna Ebenstein, autora do livro “The Anatomical Venus: Wax, God, Death & the Ecstatic”.
A primeira delas foi criada em 1780 pela equipe do Reale Museo di Fisica e Storia Naturale, conhecido como La Specola, liderada por Felice Fontana e Clemente Susini. Bastou pouco tempo para que as modelos fizessem sucesso entre os médicos, que viram nelas uma solução para o ensino da anatomia, já que não precisariam mais depender apenas da doação de cadáveres. O sucesso foi tanto que logo as Vênus Anatômicas começaram a se espalhar por outros países.
Apesar de parecerem estranhas e mórbidas aos olhos contemporâneos, é preciso entender o contexto por trás da criação das Vênus Anatômicas. Além de serem consideradas quase como obras de arte, elas ajudaram no avanço dos estudos da anatomia e despontaram como uma solução para o ensino da medicina em épocas de verdadeira escassez de cadáveres doados para escolas e universidades.
“Tudo isso é um lembrete de que a divisão que temos entre morte e beleza, Eros e Thanatos, religião e medicina, espetáculo e educação é um produto de nossa própria perspectiva contemporânea; nosso desconforto com a cultura material do passado revela mais sobre nós do que sobre eles”, ensina Ebenstein.
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