Em abril deste ano, agências nacionais de saúde europeias e norte-americanas, emitiram alertas médicos para o aumento de casos de uma misteriosa e grave hepatite em crianças. Os primeiros casos surgiram no Reino Unido, especificamente na Escócia, em crianças e adolescentes previamente hígidos, sendo a grande maioria, menores de 5 anos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) também relatou 9 casos no estado do Alabama no mês de abril e no mês de maio, mais casos surgiram, inclusive, no Brasil.
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No dia 7 de maio de 2022, foram notificados 367 casos em mais de 20 países, sendo 163 no Reino Unido, 109 nos EUA e 95 outros países europeus. Em 06 de maio foi confirmado um 1 caso na Argentina e na última sexta-feira (6), o Ministério da Saúde confirmou a investigação de 7 casos, sendo quatro no Rio de Janeiro e três no Paraná.
O que chama atenção nestes casos é a gravidade. Cerca de 90% dos pacientes precisam de internação e, eventualmente, necessitam de transplante hepático na Europa foi de 10% (17 casos) e 14%(15 casos) nos EUA. Historicamente a necessidade de transplantes hepáticos em hepatites fulminantes em crianças é de 1 caso a cada 1.000 a 10.000 hepatites e nesta misteriosa hepatite a necessidade de transplante está sendo de 1 a 2 transplantes a cada 10 casos, no mínimo mil vezes maior.
A mortalidade dos 109 casos americanos foi de 5%(5 casos), com uma morte no Reino Unido e três na Indonésia. O quadro clínico é o mesmo de todas as hepatites virais, com dores abdominais, diarreia, vômitos, inapetência, fadiga, icterícia, colúria e acolia. Na investigação, não houve confirmação dos vírus mais frequentes (A,B,C,D,E), assim como nenhum medicamento ou toxina.
Chama atenção a importante elevação de enzimas hepáticas e rápida evolução para insuficiência hepática. Até o momento houve relato de nove mortes, sendo cinco nos EUA, três na Indonésia e uma na Europa.
Qual é a causa da hepatite misteriosa?
O que está intrigando a comunidade científica mundial, é qual a causa destas graves hepatites. Existem muitas hipóteses, mas até o momento nenhuma explica com coerência e exatidão, este surto.
A hipótese mais provável até o momento é que o agente causador seja o Adenovírus 41, que normalmente causa gastroenterites benignas e que pode ser causador de patologias mais graves, como hepatites em pacientes imunossuprimidos.
Existem mais de 100 variantes do Adenovírus, sendo que 50 agridem seres humanos, causando diarreias, conjuntivites, cistites e infecções de vias aéreas superiores. O adenovírus não explica todos os casos, pois somente 72% dos casos europeus tiveram sorologias positivas para Adenovírus.
Outro ponto importante é que o adenovírus foi identificado somente em exames de sangue, não sendo encontrado em nenhuma biópsia hepática realizada, sendo difícil afirmar que o adenovírus tenha uma relação causal direta com estes quadros de graves hepatites, podendo sim, ser o gatilho de uma resposta imunológica exagerada ou um mero achado.
Existe a possibilidade de ser um nova variante mais agressiva do Adenovírus, ou que devido ao isolamento prolongado devido à pandemia, as crianças, estejam tendo uma resposta imunológica exagerada e apresentando quadros mais graves frente a um benigno agente etiológico.
A justificativa é que a COVID- 19 pode promover uma alteração do sistema imunológico, diminuindo a capacidade de defesa através da limitação da ação de células T de defesa, diminuindo imunidade antiviral, tornando quadros que deveriam ser leves e benignos, mais graves por atingir um hospedeiro mais suscetível e frágil imunologicamente.
Outra linha de pesquisa ainda não descartada, devido ao momento epidemiológico que vivemos, é que seja uma nova manifestação da COVID-19, visto que pelo menos vinte casos europeus(18%) as crianças eram positivas Sars-Cov-2 e dezenove crianças positivaram para coronavírus e Adenovírus. Todos os nove casos iniciais nos EUA eram negativos para COVID-19.
O coronavírus têm um tropismo pelo fígado, visto que em trabalho publicado em março deste ano na Nature, foi evidenciado em 69% das autópsias em pacientes que foram à óbito por COVID-19 a presença do RNA viral no tecido hepático.
Também existe a possibilidade de ser uma complicação ou nova manifestação da COVID-19 longa em crianças, como é a Síndrome Inflamatória Multissistêmica.
Estudos apontam que 10 a 50% das crianças com esta Síndrome Inflamatória apresentam hepatomegalia e alterações de enzimas hepáticas sendo estas alterações um fator de mau prognóstico.
Duas evidências chamam atenção para a possibilidade de ser uma manifestação tardia da COVID-19 em crianças:
1. A grande maioria dos casos ocorreu em crianças menores de 5 anos, não vacinadas;
2. Com a variante Ômicron, houve explosão de casos em crianças. Estima-se que 55% das crianças do Reino Unido e 75% das norte- americanas já tiveram COVID-19.
Vale lembrar que todos os casos de crianças em Israel com esta grave hepatite, já tiveram coronavírus. Não está afastada também a possibilidade de ser um novo agente causal, assim como foi o vírus da Hepatite C, que demorou quase vinte anos para ser descoberto. Está afastada a possibilidade de ter relação com as vacinas contra COVID-19, pois como já foi citado, quase na totalidade dos casos as crianças não foram vacinadas.
Cuidados são importantes, mas pais não devem entrar pânico
A situação é séria e alarmante, mas não é momento para pânico ou desespero dos pais. A meu ver, é importante reforçar os cuidados e claro que os pais e responsáveis por crianças precisam ficar atentos a sintomas incomuns como: icterícia; colúria e acolia e buscarem auxílio médico imediatamente caso isso aconteça.
Aos colegas da classe médica: é importante redobrar a atenção para que o diagnóstico seja feito da maneira mais precoce e correta possível e todos os casos devem ser notificados às autoridades sanitárias.
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Como prevenção, vale a pena reforçar as boas e velhas medidas de higiene respiratória, além da higienização das mãos com álcool em gel e água e sabão e limpeza intensificada das superfícies.
Referências
- BAKER, Julia M. Acute Hepatitis and Adenovirus Infection Among Children—Alabama, October 2021–February 2022. MMWR. Morbidity and Mortality Weekly Report, v. 71, 2022. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/71/wr/mm7118e1.htm. Acesso em: maio de 2022.
- MARSH, Kimberly et al. Investigation into cases of hepatitis of unknown aetiology among young children, Scotland, 1 January 2022 to 12 April 2022. Eurosurveillance, v. 27, n. 15, p. 2200318, 2022. Disponível em: https://www.eurosurveillance.org/content/10.2807/1560-7917.ES.2022.27.15.2200318?utm_source=STAT+Newsletters&utm_campaign=5f40c5e795-MR_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_8cab1d7961-5f40c5e795-150521553. Acesso em: maio de 2022.
- WANNER, Nicola et al. Molecular consequences of SARS-CoV-2 liver tropism. Nature metabolism, p. 1-10, 2022. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s42255-022-00552-6. Acesso em: maio de 2022.
- FELDSTEIN, Leora R. et al. Multisystem inflammatory syndrome in US children and adolescents. New England Journal of Medicine, v. 383, n. 4, p. 334-346, 2020. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2021680. Acesso em: maio de 2022.
- LAZOVA, Snezhina et al. Liver Involvement in Children with COVID-19 and Multisystem Inflammatory Syndrome: A Single-Center Bulgarian Observational Study. Microorganisms, v. 9, n. 9, p. 1958, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.3390/microorganisms9091958. Acesso em: maio de 2022.