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Pode vir quente que eu estou "mindful", ou Medita que te "fa bene" – meditação e mindfulness para todas as tribos e línguas da saúde

Pode vir quente que eu estou "mindful", ou Medita que te "fa bene" – meditação e mindfulness para todas as tribos e línguas da saúde
Cristiane Benvenuto Andrade
ago. 3 - 11 min de leitura
020

Toda hora alguém me diz que é muito agitado ou ligado demais no 220 para conseguir meditar. E eu entendo perfeitamente. Lembro de mim sentada na cama com um timer de dez minutos rodando e pensando: "tá, será que eu já estou meditando?... expira... Uma formiga caminhando na minha testa?... Ahh o cabelo... inspira... Esse alarme na rua não para! ... inspira... Será que a Ana lembrou de comprar a comida do gato? Aliás, cadê o gato?... Medita, Cristiane! ... expira... O quê?! Só dois minutos de meditação até agora?! Não nasci pra isso... vou ficar pra sempre no 220..." E assim terminavam minhas tentativas e a esperança de virar uma pessoa meditada.

Até que um dia entendi o que precisava fazer e porque meditar era tão importante. Os efeitos sobre a saúde, os relacionamentos e o trabalho são enormes. E isso é baseado em evidências. Foram as evidências e a observação atenta, sem julgamento, das pessoas que meditavam que me ajudaram a evoluir e aprender.

Ficar vendo a capa da Veja e do New York Times me dizendo que era importante meditar só criava mais ansiedade. Era mais uma tarefa impossível na minha lista enorme de prioridades.

Ao mesmo tempo eu tinha um certo orgulho do meu cérebro em 220. Afinal, foi ele que me levou tão longe na carreira. Para que estragar? Também achava o povo zen meio devagar-quase-parando e não tinha certeza de que queria me tornar um deles. "Muita pseudociência envolvida...", meu cérebro me dizia.

A gente fala muito de Storytelling hoje em dia. Ele quer dizer que a forma que você conta uma história pode impactar seu público, seus pacientes, seus clientes. Um produto precisa contar uma história para ser amado, o seu Instagram precisa contar uma história ao paciente.

Quer aprender a contar histórias persuasivas? Observa o seu cérebro! Cérebros passam o tempo todo nos contando histórias muito persuasivas. Nem tudo é verdade ou faz sentido, mas a gente acredita sem questionar.

Veja minhas histórias pra evitar meditar:

  • Pessoas bem-sucedidas e importantes são ocupadas e funcionam em 220;
  • Pessoas zen não produzem nada, falam só pseudociência e não merecem admiração;
  • Não tenho tempo para ficar sentada sem fazer nada, tenho muita coisa importante para fazer;
  • Me orgulho do jeito que sou. Para que mudar? Mudanças são sempre perigosas.

E o seu cérebro, quais histórias tem contado?

Na verdade, existem muitas formas de meditar e nenhuma delas se trata de bloquear os pensamentos e muito menos deixar o cérebro obnubilado (adoro essa palavra :).

Aliás, tentar impedir que o cérebro pense é a chave pra ele desembestar pensando. Quer ver? Se você está lendo, não pense numa bola vermelha explodindo. Não pense na bola vermelha explodindo! Pensou? Pronto… Adoro fazer isso com meus filhos.

Isso serve para várias coisas na vida. Desde a meditação, a dieta, até a hora de abandonar o cigarro.  

Entrar em guerra com nosso próprio cérebro e nossos desejos é automático, principalmente quando não temos tempo de nos cuidar e parar para observar nossos padrões e crenças limitantes em ação.

Daí você se promete que nunca mais vai comer chocolate. E cada vez que um chocolate aparece existem aqueles segundos de sofrimento. Então você come o chocolate porque, afinal, que exagero! Depois vem a tristeza de não ter mantido a promessa. Junto vem também a sensação de falha e a vontade de comer todo o resto do saco de chocolate, já que você nunca vai ter jeito... (troca o chocolate pelo cigarro, pelo encontro com o ex-namorado, por qualquer outra coisa que você quer evitar e a história é a mesma).

Lembra daquela frase que o chefe ou o colega te disse e está entalada na garganta? Melhor não pensar nela né? Será?

Acabar a guerra com o cérebro e suas histórias para criar alguma harmonia em meio ao caos é chave para a gente mudar muita coisa na vida. Por isso é tão importante achar formas gentis de observar o pensamento e perceber a informação que ele nos traz, as crenças que estão dirigindo nossas decisões e os medos que estão nos protegendo de viver a vida.

Estar mindful é viver o momento exatamente como ele se apresenta. Perceber sem reagir, observar sem julgar, tanto o que vem da nossa mente, quanto do mundo ao redor. Assim podem surgir novas possiblidades na nossa vida que nunca permitimos que surgissem antes.

Mas e os pacientes? Isso serve para eles também?

É tão simples dar uma receita ao paciente e dizer: “não coma sobremesa... O quê? Você adora sobremesa? Lembra o carinho da tua mãe? Não... não pode. O carinho da tua mãe vai te matar. Tenta um copo de água bem gelado no lugar”.

Vai funcionar? Assim fica óbvio que não. Mas duvido que o paciente te fale sobre o carinho da mãe. Você vai receber a hemoglobina glicada alta e dizer que houve falha do tratamento, talvez mudar a medicação. E lá vamos nós...

Já tentou tomar um antibiótico 3 vezes ao dia? É muito difícil quando a gente trabalha. Mais ainda quando a gente leu na bula que pode causar impotência. Mas isso a gente não fala para o médico, nem para a gente mesmo. A gente só esquece de tomar porque está muito ocupado. O médico vai entender e não vai perguntar muito. Pacientes são esquecidos mesmo.

Aprender a meditar, além de um poderoso exercício de autocuidado, é também uma forma de evoluir como profissional, de oferecer aos pacientes algo que nenhum robô vai oferecer tão cedo: empatia em ação.

Mindfulness é uma forma de exercitar a empatia. Podemos entender o paciente e ajudá-lo a perceber e manejar os bloqueios que encontram na hora de praticar o autocuidado e seguir as prescrições. Com paciente (e com nosso cérebro) não adianta mandar fazer alguma coisa, tem que engajar.

Tá, daí vem a pergunta: por onde começo? Eu fui pra Índia e passei onze dias em um retiro de silêncio. Um dia conto sobre essa experiência relaxante e infernal. Também li muito artigo para o meu cérebro cientista se convencer de que fazia sentido científico meditar. Funcionou, mas não precisa ser assim pra todo mundo.

Uma boa forma é você tentar perceber que histórias o teu cérebro está te contando para não começar a meditar (ou para interromper, se você chegou a meditar e agora parou). Será que elas fazem sentido?

Aqui vão outras sugestões de caminhos para seguir:

  • Realmente existe muito pseudocientista na esfera mais zen da Medicina. Mas será que todos são? E será que tudo na vida é ciência? Olha que curso bacana esse da Harvard sobre resposta de relaxamento: Stress and the Relaxation Response: The Fundamentals of Mind Body Medicine . Ele trata de técnicas mais simples de relaxamento (simples, mas muito poderosas no controle dos efeitos do estresse). Eles não vão tão fundo na questão de mindfulness, mas trazem muita informação que ajuda a acalmar nosso cientista cético.
  • E o estilo da meditação? Ficar sozinho pensando no nada te deixa ansioso? Gosta quando alguém te guia? Que tal experimentar um aplicativo gratuito? Esse eu acho o melhor de todos: Insight Timer. Tem sessão para todos os gostos, inclusive para as crianças. Tem também cursos e aulas em diversas línguas.
  • Não gosta de sentar com as pernas cruzadas? Dá pra comer e praticar esportes de forma mindful. Aprendi com uma aluna que até lavando louça é possível. Eu adoro ficar presente e mindful quando limpo o jardim. Dr. Google tem informação sobre tudo isso. Pode procurar.
  • Quer dicas bem práticas (cansado só de teoria) e sabe ler inglês? Assina a newsletter do Zen Habits. Uma delícia de ler.

Seu cérebro não precisa parar de pensar. Você só precisa conseguir observar os pensamentos sem reagir imediatamente a eles. Nem sempre eles estão certos, nem sempre eles fazem sentido. Isso vai te ajudar a perceber melhor o mundo ao teu redor, com menos preconceitos, menos limitações criadas pelo medo ou pelos sustos da vida.

Você entrou atrasado na sala e percebeu o olhar do seu colega. O teu cérebro leu reprovação, entendeu que ele não gostou de alguma coisa que você fez. E você acreditou. Já achou o cara um idiota e nem vai perder tempo falando com ele. Aliás, todo mundo naquela sala parece estar contra você. Pronto, teu cérebro conseguiu estar certo. Você e a pessoa não vão nem ter chance de se dar bem. Talvez você nem volte mais na aula ou na reunião.

Se você fosse lá falar com a criatura, talvez descobrisse que o problema dele era a briga com a namorada de manhã (nem te viu entrar...) ou, se ele realmente não tivesse gostado do seu atraso, poderia falar com ele e criar uma boa relação a partir dali. Mas preferiu reagir aos pensamentos.

Meditar é como receber um e-mail do cérebro e ler com calma antes de responder. Eu já tive surpresas bem interessantes ao responder e-mails na pressa. Você já passou por isso?

Dá pra viver de forma diferente, de forma consciente, sem reagir o tempo todo e sem se sentir vítima do caos da vida. Dá para ter uma rotina mais saudável, curtir mais os filhos humanos, caninos ou felinos, avançar na profissão sem tanto sofrimento.

Mas nem tudo são flores. Observar os pensamentos nem sempre é libertador. Algumas vezes a gente começa a tomar consciência e perceber emoções muito fortes, coisas que nem sempre estamos prontos para enfrentar sozinhos. Eu mesma já procurei ajuda de colegas da área de saúde mental quando percebi dificuldades maiores do que eu poderia enfrentar.

Não precisamos ser heróis, não precisamos enfrentar tudo sozinhos, não precisamos mostrar ao mundo como somos fortes e perfeitos, como nossas vidas são perfeitas, como "amamos tudo o que fazemos" (ouço muito isso de médico). Essas também são histórias que contamos todos os dias, mas podemos mudar. A realidade está no meio do caminho entre perfeito e fracassado.

Nunca me esqueço da lição que recebi da minha filha quando ela tinha uns 5 anos de idade. Era o início do Minecraft. Ela me mostrou o mundo em que estava jogando e disse que havia uma área escura, que dava muito medo de entrar, mas agora estava tudo resolvido. Eu perguntei o que ela tinha feito para resolver, achei que tinha construído um muro para tapar a escuridão. Mas ela me disse: não, mãe, construí minha casa lá.  

E aqui fica meu convite para a gente construir nossas vidas para além dos medos, dos pensamentos limitantes, das crenças que não nos servem mais. E junto levar nossos pacientes. Mindfulness não é a solução para todos os problemas da vida, mas nos ajuda a enxergar melhor quais são exatamente nossos problemas e a buscar soluções onde antes não acreditávamos que seria possível.


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