A rabdomiólise é uma síndrome caracterizada por destruição do músculo esquelético com liberação de conteúdo intracelular na corrente sanguínea, incluindo eletrólitos, enzimas e mioglobina, resultando em complicações sistêmicas. O impacto sistêmico da rabdomiólise varia de elevações assintomáticas nas enzimas musculares da corrente sanguínea a lesão renal aguda com risco de vida e anormalidades eletrolíticas.
Fisiopatologia
A morte celular muscular pode ser desencadeada por um fator mecânico (primário) ou metabólico (secundário). A via final comum para a lesão é um aumento no cálcio citoplasmático e mitocondrial ionizado livre intracelular, que pode ser causado pela depleção de trifosfato de adenosina (ATP)e/ou por lesão direta e ruptura da membrana plasmática.
O aumento do cálcio intracelular leva à ativação de proteases, aumento da contratilidade das células musculares esqueléticas, disfunção mitocondrial e produção de espécies reativas de oxigênio, resultando em morte das células musculares esqueléticas. Com a depleção de ATP as bombas de transporte ativo não são mais capazes de manter baixos níveis de cálcio intracelular e os aumentos desregulados no cálcio intracelular levam à ativação de enzimas dependentes de cálcio com eventual quebra da célula muscular. A depleção de ATP leva à lesão do miócito e à liberação de constituintes musculares intracelulares, incluindo creatina fosfoquinase (CPK) e outras enzimas musculares, como mioglobina e vários eletrólitos. Além disso, a mioglobina contém o grupo heme, que é nefrotóxico.
Quando suspeitar de rabdomiólise?
De acordo com o documento de consenso clínico publicado em fevereiro de 2022 pelo Comitê de Cuidados Intensivos da Associação Americana para a Cirurgia do Trauma (AAST), deve-se suspeitar de rabdomiólise quando há grande carga de lesão traumática envolvendo tecido muscular, especialmente pacientes com lesões por esmagamento envolvendo as extremidades ou extremidades mutiladas. Pacientes com lesões vasculares ou isquemia muscular com subsequente reperfusão também apresentam maior risco de rabdomiólise.
Outros fatores de risco independentes para rabdomiólise em pacientes com trauma incluem idade superior a 55 anos, Injury Severity Score maior que 16, trauma penetrante com lesão vascular, lesão grave de extremidade, sexo masculino e índice de massa corporal maior que 30 kg/m 2.Também apresentam maior risco de rabdomiólise os pacientes que sofrem queda e tem em seguida uma imobilização prolongada, principalmente se seus membros forem comprimidos pela cabeça ou tronco por um período significativo de tempo, levando à hipóxia muscular.
Injury Severity Score é um score usado para avaliar a gravidade do trauma. É aplicado em forma de um sistema de pontuação anatômica que fornece uma pontuação geral para pacientes com lesões múltiplas e se correlaciona linearmente com a mortalidade , morbidade, permanência hospitalar e outras medidas de gravidade.
Há também que suspeitar de rabdomiólise em pacientes com uma condição médica que cause aumento das demandas metabólicas dos miócitos, que extrapole o suprimento disponível de ATP. Isso pode resultar de demandas extremas de esforço no músculo esquelético pelo exercício, agentes exógenos, como drogas ou toxinas, defeitos genéticos ou miopatias que afetam a célula muscular e infecções.
Além disso, como causas menos comuns há: infecções; cirurgia vascular e cardíaca; intoxicações exógenas com álcool, drogas ilícitas e medicamentos; iatrogenia; miopatias metabólicas como distúrbios hereditários de glicogenólise, glicólise ou metabolismo lipídico; hipotireoidismo, diabetes, hipertermia maligna; hipotermia; afogamento; estado mal epiléptico, delirium tremens, agitação psicótica, superdosagem de anfetaminas.
Sobre as infecções, as virais agudas associadas à rabdomiólise incluem influenza A e B, Coxsackievirus, Epstein-Barr, herpes simples, parainfluenza, adenovírus, ecovírus, HIV, citomegalovírus e SARS-CoV-2. Também, é possível citar infecções bacterianas que podem cursar com rabdomiólise: por Mycoplasma pneumoniae, Legionella , tularemia, Streptococcus e Salmonella , E. coli , leptospirose, Coxiella burnetii (febre Q) e infecção estafilocócica Piomiosite bacteriana e Anaplasmose granulocítica humana (erliquiose). Malária também pode causar rabdomiólise.
Em relação aos medicamentos, os que possuem mais associação com rabdomiólise são: estatinas, colchicina,daptomicina, anestésicos como: halotano, isoflurano, sevoflurano e desflurano. Também por interação medicamentosa, os agentes agressores incluem antibióticos macrolídeos (por exemplo, eritromicina e claritromicina), ciclosporina, gemfibrozil e alguns inibidores de protease usados no tratamento da infecção pelo HIV.
Manifestações clínicas
Pode variar de assintomática a tríade característica, que inclui fraqueza muscular aguda, dor muscular e urina escura (avermelhada-amarronzada). Quando presente, a dor muscular é mais proeminente em grupos musculares proximais, como coxas e ombros, e na parte inferior das costas e panturrilhas. Outros sintomas musculares incluem rigidez e cãibras. Pacientes severamente comprometidos podem ter mal-estar, febre, taquicardia, náuseas e vômitos e dor abdominal. Ulceração por pressão superficial ou formação de bolhas pode sugerir o diagnóstico, mas não é um achado confiável. Nos extremos da patologia, as síndromes compartimentais dos grupos musculares afetados levam ao aumento da morbidade e potencial necessidade de descompressão.
A disfunção orgânica resultante pode incluir lesão renal, cardíaca (arritmia) e coagulopatia. Um baixo limiar de suspeita clínica no laboratório adequado e no contexto histórico é garantido para iniciar a terapia apropriada.
Que achados laboratoriais auxiliam no diagnóstico de rabdomiólise?
A variável mais comumente encontrada é a elevada concentração sérica de CPK maior que 5 × o limite superior do normal ou maior que 1.000 UI/L. Além disso, podem ser encontradas elevações de mioglobina, lactato desidrogenase (LDH), potássio, creatinina e aspartato aminotransferase (AST).
Os valores de CPK podem se elevar dentro de 12 horas após a lesão, atingir o pico em 24 a 72 horas e retornar ao normal em aproximadamente 5 dias, dependendo do grau da lesão e da terapia apropriada.r. A CPK tem uma meia-vida sérica de cerca de 1,5 dias e diminui a uma taxa relativamente constante de cerca de 40 a 50 por cento do valor do dia anterior.
A mioglobina tem uma meia-vida mais curta de 1-3 horas e pode aumentar e desaparecer antes que a CPK diminua. A mioglobina também pode ser evidente na urina e, embora a sensibilidade tenha sido relatada de até 100%, a especificidade varia amplamente de 15% a 88%
Diagnóstico
É realizado em um paciente com doença neuromuscular aguda ou urina escura sem outros sintomas, além de uma elevação aguda acentuada da creatina quinase sérica (CK).
Tratamento
Os principais pontos no manejo de rabdomiólise são reconhecimento e tratamento de anormalidades hidroeletrolíticas; identificação das causas específicas e uso de contramedidas; reconhecimento imediato, avaliação e tratamento da síndrome compartimental, se esta estiver presente.
Complicações
Pode haver elevação assintomática da proteína muscular até um acúmulo de desequilíbrios eletrolíticos, edema e componentes celulares tóxicos. A morbidade pode se apresentar precoce ou tardiamente, incluindo hipercalemia, disfunção hepática, disfunção cardíaca, Lesão Renal Aguda (LRA), Insuficiência Renal Aguda (IRA), Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD) e síndrome compartimental. A Lesão Renal Aguda está frequentemente associada a níveis excessivos de potássio e correlaciona-se com o volume de destruição muscular e é a complicação sistêmica mais comum da rabdomiólise e é responsável pela maior parte da morbidade e mortalidade associadas à rabdomiólise.
A prevenção de Lesão Renal Aguda na rabdomiólise
Como prevenção da LRA, recomenda-se a ressuscitação de volume precoce para promover fluxo tubular renal, diluição de nefrotoxinas como a mioglobina e perfusão renal adequada. Para isso, não há recomendação para o melhor tipo de cristalóide, entretanto, os dois fluidos mais citados para essa ressuscitação são solução de Ringer com lactato e soro fisiológico (0,9% ou 0,45%).
O débito urinário é o método tradicional pelo qual se pode determinar a adequação da ressuscitação na rabdomiólise. As metas de débito urinário mais comumente citadas para reidratação de fluidos intravenosos são 1 mL/kg/hora a 3 mL/kg/hora e até 300 mL/hora. No entanto, se o paciente permanecer anúrico apesar das taxas crescentes de administração de fluidos intravenosos, a necessidade de Terapia Renal Substitutiva pode ser necessária, pois a ressuscitação volêmica agressiva contínua sem depuração renal pode levar a uma sobrecarga de volume significativa e com risco de vida.
Além disso, a alcalinização da urina pode minimizar a lesão renal na rabdomiólise e pode melhorar ou prevenir a LRA. Além disso, o manitol, um diurético osmótico, é uma opção terapêutica potencialmente atraente nesse cenário, dada sua capacidade de vasodilatação renal, eliminação de radicais livres e potencial de redução das pressões do compartimento muscular.
Anormalidades eletrolíticas esperadas e os métodos ideais para o manejo
Hipercalemia, hiperfosfatemia e hipocalcemia são anormalidades eletrolíticas mais comumente encontradas no tratamento de rabdomiólise.
A hipercalemia que ocorre na LRA induzida por rabdomiólise ocorre no início do processo da doença e deve ser monitorada de perto. Pacientes com níveis elevados de potássio (>6 mmol/L) devem ter monitoramento cardíaco. O ECG deve ser obtido e avaliado para manifestações de hipercalemia grave (alargamento do QRS, ondas p pequenas e arritmias graves).
A hiperfosfatemia inibe a formação de calcitriol e, portanto, limita a formação da forma ativa da vitamina D e o fosfato se liga ao cálcio e esse complexo se deposita nos tecidos moles. O tratamento da hiperfosfatemia deve ser feito com cautela, pois o tratamento envolve a administração de um quelante de cálcio que pode aumentar a precipitação de fosfato de cálcio no músculo lesionado . A hiperfosfatemia precoce geralmente diminui à medida que o fosfato é excretado na urina.
A hipocalcemia ocorre precocemente na rabdomiólise devido à entrada de cálcio nas células danificadas e deposição de fosfato de cálcio no músculo necrótico. O tratamento precoce da hipocalcemia na rabdomiólise deve ser evitado, a menos que os pacientes sejam sintomáticos ou hipercalemia grave esteja presente. Além disso, a hipocalcemia agrava os efeitos elétricos da hipercalemia e deve ser tratada agressivamente com cloreto de cálcio ou gluconato de cálcio neste cenário.
Score para prognóstico de rabdomiólise
O McMahon Score é uma ferramenta de predição de risco validada prospectivamente para identificar pacientes com alto risco de Terapia Renal Substitutiva (TRS) ou mortalidade hospitalar. Quando calculado na admissão a partir de dados demográficos e de química do sangue, uma pontuação ≥6 é 86% sensível e 68% específica para pacientes que necessitarão de TRS. Nesse cenário, os autores recomendam o início da terapia de proteção renal com um débito urinário alvo de 1 mL/kg/hora a 3 mL/kg/hora e até 300 cc/hora.
Leia também:
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Lesão Renal Aguda: quais são os cuidados
Distúrbios Hidroeletrolíticos: O que são, como identificar e conduzir
REFERÊNCIAS
- Causes of rhabdomyolysis no UpToDate
- Clinical manifestations and diagnosis of rhabdomyolysis no UpToDate
- Kodadek L, Carmichael SP, Seshadri A, et alRhabdomyolysis: an American Association for the Surgery of Trauma Critical Care Committee Clinical Consensus DocumentTrauma Surgery & Acute Care Open 2022;7:e000836. doi: 10.1136/tsaco-2021-000836