A Primeira Seção do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou, no início desta semana, a
suspensão da tramitação de ações individuais ou coletivas que discutem a
possibilidade de autorização para importação e cultivo de variedades
de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais.
A medida é válida para todo
o território nacional e ocorre, segundo o próprio STJ, após a admissão de incidente de assunção de competência (IAC) sobre o tema, delimitado nos seguintes termos:
"Definir a possibilidade de concessão de autorização sanitária para
importação e cultivo de variedades de cannabis que, embora produzam tetrahidrocanabinol (THC) em
baixas concentrações, geram altos índices de canabidiol (CBD) ou de outros
canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais
subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais,
à luz da Lei 11.343/2006, da Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto
54.216/1964), da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Decreto
79.388/1977) e da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas (Decreto 154/1991)".
Além da
suspensão nacional dos processos, a ministra e relatora Regina Helena Costa,
determinou, para julgamento do IAC, a comunicação a diversos órgãos e
instituições para que manifestem seu interesse de participar do processo. Para
entender um pouco mais sobre a determinação e suas consequências, a Academia
Médica conversou com o advogado Cristiano Plate, Sócio
Titular do Escritório Especializado em Direito Médico e Hospitalar e Saúde
Suplementar, Cristiano Plate & Advogados Associados. Confira:
Academia Médica: Por que a questão do
cultivo do cannabis no Brasil é tão controversa?
Cristiano
Plate: A questão é controvertida porque a legislação proíbe
o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos
quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, e a cannabis sativa está na
Lista I da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 e integra a lista “E” da
Portaria 344/1998 da ANVISA, que é norma sanitária
que dispõe sobre as medidas de controle para substâncias Entorpecentes,
Precursoras, Psicotrópicas e Outras sob Controle Especial. (Lei
11.343/2006; RCD 66/2016; Resolução nº. 327/2019 da ANVISA; Resolução nº 335/2020
da ANVISA)
Hoje, a utilização de produtos derivados
de cannabis para fins medicinais é regulada pela Agência de
Vigilância Sanitária (Anvisa) por meio da Resolução da Diretoria Colegiada 327/2019, havendo,
atualmente, mais de 23 medicamentos à base de canabidiol e de outros canabinoides
autorizados pela agência. Porém, esses fármacos são produzidos em território
nacional mediante utilização de canabidiol e de outros canabinoides oriundos de
países onde é autorizado o plantio de hemp (cânhamo industrial) e
demais variedades de cannabis.
O Brasil não possui
regulamentação específica para cânhamo, pois, cientificamente, entende-se que
se trata da mesma espécie já regulamentada como Cannabis sativa, prevista na Portaria
nº 344/1998 e suas atualizações, estando controladas a planta e todas as
substâncias dela obtidas. A necessidade de controle destes produtos se
justifica, entre outras razões, pelo fato de suas propriedades apresentarem
potencial de causar dependência e de serem utilizadas de forma abusiva ou
indevida.
No STJ, a orientação jurisprudencial
das Turmas que integram a 3ª Seção é no sentido de autorizar o plantio de
Cannabis por pessoas físicas, para fins medicinais, de sorte a permitir a
extração de substâncias necessárias à produção de medicamentos artesanais
prescritos por profissionais de saúde, afastando, em consequência, a
caracterização dos crimes dos arts. 28 e 33 da Lei n.11.343/2006, diretriz cuja
observância, conquanto permita o cultivo das mencionadas culturas de maneira
restrita ao uso individual, insere-se no contexto maior de debates atuais
acerca das diversas formas de utilização de derivados de Cannabis para fins
medicinais ou farmacêuticos (e.g. 5ª T., HC n. 779.289/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares
da Fonseca, j. 22.11.2022, DJe 28.11.2022; 6ª T., RHC n. 147.169/SP, Rel. Min.
Sebastião Reis Júnior, j. 14.06.2022, DJe 20.06.2022; 6ª T., REsp n.
1.972.092/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 14.06.2022, DJe 30.06.2022)
No âmbito da Câmara dos
Deputados, encontra-se em trâmite o Substitutivo ao Projeto de Lei n. 399/2015, de relatoria do Sr.
Deputado Federal Luciano Ducci, o qual versa sobre o Marco Regulatório da
Cannabis no Brasil e regulamenta o mercado de cultivo da planta e de
industrialização de seus subprodutos para fins medicinais, cujo aspecto abrangente
se volta à instituição de regramento direcionado a quaisquer de suas
variedades, mesmo aquelas com elevadas concentrações de THC.
Enquanto a discussão legislativa não avança, as
pessoas que precisam de medicamentos à base de canadibiol têm recorrido ao
Judiciário.
Academia
Médica: O que representa essa determinação do STJ?
Cristiano Plate: A admissão do Incidente
de Assunção de Competência (IAC) pela Primeira Seção do STJ, proferida no REsp
2.024.250, não
se trata de uma proibição, mas sim da criação de um precedente vinculante para
fixar tese delimitando a questão de direito controvertida, qual seja:
“Definir
a possibilidade de concessão de Autorização Sanitária para importação e cultivo
de variedades de Cannabis que, embora produzam Tetrahidrocanabinol (THC) em
baixas concentrações, geram altos índices de Canabidiol (CBD) ou de outros
Canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais
subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais,
à luz da Lei n. 11.343/2006, da Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n.
54.216/1964), da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Decreto n.
79.388/1977) e da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas (Decreto n. 154/1991).”
No recurso será avaliado se a vedação ao
cultivo e à exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas
ou produzidas drogas (artigo 2º da Lei 11.343/2006) também alcança as culturas que
produzem diminuta concentração de THC e, por conseguinte, não são empregadas na
criação de entorpecentes.
A empresa que ajuizou a
ação afirma que o plantio de determinada variedade de Cannabis nomeada de Hemp (cânhamo industrial), por
produzir plantas com baixo teor de THC, é incapaz de ser utilizada na
fabricação de drogas e não se enquadra na vedação legal.
O TRF-4 ao analisar a matéria entendeu
que uma ampla autorização para importação de sementes, plantio, comercialização
e exploração industrial da Cannabis sativa, ainda que somente uma
de suas espécies
e para fins
exclusivamente industriais e farmacêuticos, é
matéria de natureza
eminentemente política, que
depende de deliberações dos
Poderes Legislativo e
Executivo, não cabendo
ao Poder Judiciário intervir
nessa seara, para
atender ao interesse
de uma ou
outra empresa.
Entendeu ainda que a legislação proíbe
expressamente o cultivo, o comércio e a manipulação da Cannabis sativa, salvo
exceções pontuais para fins de pesquisa e uso médico restrito, e o pleito da empresa
é amplo, não se limita, por exemplo, a registro e comercialização de um
medicamento específico, mas visa ao cultivo, em escala industrial, da Cannabis
sativa para fins de extrair dela substâncias a serem utilizadas na fabricação
de medicamentos.
Por enquanto, todas ações que versam
sobre o mesmo tema ficarão suspensas até que seja proferida decisão nesse
recurso. Serão encaminhados ofícios à
Secretaria Nacional Antidrogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública-SENAD,
à Agência Nacional de Vigilância Sanitária-ANVISA, ao Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, ao Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime - UNODC, ao Conselho Federal de Medicina-CFM, ao Conselho Federal
de Biologia-CFBIO, à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São
Paulo - UNIFESP, ao Departamento de Botânica da Universidade de Brasília -
UnB, à Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo-USP e à Sociedade
Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa - SBEC para, querendo, apresentarem manifestação, no prazo comum de 15
(quinze) dias, sem prejuízo de concessão de igual oportunidade a outros
eventuais interessados.
Após manifestações, será aberta vista ao Ministério Público Federal para dar seu parecer. O Incidente de Assunção de Competência (IAC - REsp 2.024.250) é importante para o estabelecimento de precedentes vinculantes no País.
Academia
Médica: Quem serão os principais afetados?
Cristiano
Plate: Segundo alegação da empresa de biotecnologia
que ajuizou ação, existe regulamentação da Anvisa para a importação de extratos
de canabidiol por aqueles que pretendem fabricar e comercializar produtos
derivados da cannabis, mas as mercadorias acabam sendo vendidas em valor
alto no mercado nacional em razão dos entraves à importação dos insumos, razão
pela qual a autorização do cultivo de hemp no Brasil é necessária.
O
Conselho Federal de Medicina editou Resolução CFM 2.324/22 autorizando a
prescrição do canabidiol (CBD) como terapêutica médica, se indicadas para o tratamento de
epilepsias na infância
e adolescência refratárias
às terapias convencionais
na Síndrome de Dravet e Lennox – Gastaut e no Complexo de Esclerose
Tuberosa, e vedando ao médico a prescrição para indicação terapêutica diversa
da prevista na resolução.
Posteriormente,
o CFM sustou temporariamente os efeitos da referida resolução com a emissão da RESOLUÇÃO
CFM nº 2.326/2022, por conta das solicitações para revisão da Resolução pelas
entidades médicas e pela sociedade civil em geral.
Os defensores do plantio entendem que a autorização do cultivo da cannabis no Brasil poderá reduzir o custo final de medicamentos feitos à base da planta, diminuindo a dependência dos consumidores em relação aos produtos importados, que são caros.
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