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Cavalos, zebras ou zebras e cavalos? A navalha de Ockham e o Dito de Hickam

Cavalos, zebras ou zebras e cavalos? A navalha de Ockham e o Dito de Hickam
Matheus Scalzilli
nov. 18 - 5 min de leitura
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Que barulho é esse? 

Imagine essa cena: é domingo de manhã, você está sentado tranquilo na sua varanda com seu jornal e seu café. De repente, você ouve um barulho que chama sua atenção, mas você, a princípio, não tira o olho das notícias. É um som que começa baixo, porém com o passar dos segundos se torna mais alto e mais reconhecível: é o barulho de cascos indo de encontro com o chão em ritmo de galope. Qual animal vem imediatamente ao seu imaginário?

Provavelmente você pensou em um cavalo pois, a não ser que você esteja lendo das savanas africanas, é muito mais provável que o trote seja de um pangaré que estava de passagem pelas redondezas do que de uma zebra. Você não pensa, inicialmente, na possibilidade das zebras terem se revoltado e fugido do zoológico ao estilo Madagascar. Esse é um exemplo clássico do princípio da Navalha de Ockham que diz que diante de duas hipóteses teoricamente viáveis a melhor é aquela que unifica a totalidade das evidências da forma mais simples. 

Outro exemplo histórico da aplicabilidade do princípio da Navalha de Ockham na ciência foi na elaboração do modelo heliocêntrico do sistema solar. Diante das observações da movimentação dos astros e dos planetas é possível montar diversos modelos do sistema solar. Entretanto, quando vemos a complexidade dos giros e malabarismos que os planetas teriam que fazer para que o modelo geocêntrico fosse compatível com as observações empíricas torna-se evidente que o modelo heliocêntrico, com toda sua simplicidade, é o mais viável. 

E na medicina?

Na medicina, por outro lado, a utilidade da navalha é um tema de controvérsia. O diagnóstico muitas vezes é, intuitivamente, feito dessa forma, por exemplo: se um paciente chega para você confuso, com febre, rigidez de nuca e dor de cabeça você não pensa que ele tem simultaneamente uma hemorragia subarachnoide, torcicolo e uma encefalopatia hepática, você pensa na explicação que engloba todos esses sinais e sintomas em um diagnóstico único, você pensa em meningite. No entanto, como já diz aquele clássico ditado francês “dans la médecine comme l'amour, ne jamais ne toujour”, na medicina assim como no amor nem sempre nem nunca. 

Quem traz o contra-argumento a Ockham é o médico americano John Hickam com o dito de Hickam que diz:

“um paciente pode ter quantos diagnósticos ele bem entender”.

Diante da nossa realidade, com o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida global a chance de que alguém venha a desenvolver duas patologias concomitantemente é maior, uma vez que há literalmente mais tempo de vida para que se manifeste mais de uma doença ao mesmo tempo. Se nos atermos somente à navalha de Ockham estaremos muito mais vulneráveis a fechar um diagnóstico precocemente e deixar algo passar. Borden e Linklater (2013) relatam sobre um caso de uma menina de 15 anos que chegou na emergência com uma história de febre, vômitos, dor na costas e disúria há uma semana. Foi feito o diagnóstico de pielonefrite aguda e iniciado o tratamento. Poucos dias depois, a paciente apresentou melhora da dor, da disúria e da febre, entretanto, os seus episódios de vômito não melhoraram mesmo com o uso de antieméticos. Foi ai então que seus médicos decidiram continuar a investigação clínica e viram que além da pielonefrite aguda ela também tinha uma apendicite. Hickam, nesse caso, levou a melhor.

Mas e agora, o que fazer? 

Acredito, primeiramente, que estando ciente desses dois princípios, a navalha de Ockham e o dito de Hickam, nos tornamos mais perspicazes e atenciosos na prática médica para não cairmos no seus respectivos viéses. Além disso, é relevante frisar a importância de sermos extremamente meticulosos para não nos perdermos em meio a diagnósticos uma vez que o diagnóstico é uma ferramenta para estruturar e organizar a prática médica e não sua finalidade. Afinal, o trote pode ser de um cavalo, de uma zebra ou até mesmo de uma manada de zebras e cavalos, mas se você não tirar os olhos do jornal para ver o que está ali na sua frente você nunca vai saber o que esta por trás daquele barulho.  

Referências

Borden N, Linklater D. Hickam's Dictum [Internet]. NCBI. 2013 [cited 25 October 2020]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3628473/


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