Gostaria de compartilhar um dos trechos do capítulo do livro “Perturbações do Espectro do Autismo” (Nuno Lobo Antunes e equipe Técnica do PIN – SENTIDOS, 2021) . Ao longo de décadas, o neuropediatra e escritor português Nuno Lobo Antunes esteve à frente na área de pediatria. Atualmente, é diretor médico e coordenador das áreas de Neurodesenvolvimento e Neurologia do PIN (Progresso infantil), em Portugal.
“O PIN reúne uma equipe experiente e coesa de pediatras, pedopsiquiatras, psicólogos, terapeutas da fala ou da sexualidade, técnicos de educação especial. O PIN reúne uma equipa experiente e coesa, de mérito reconhecido dentro e fora de Portugal, unida em torno do ideal de servir as famílias na luta contra a discriminação de quem é diferente ou mais frágil. Para nós, não existem crianças problemáticas, mas sim crianças com um problema. De bom grado aceitamos o desafio de o identificar e minorar o seu impacto. PIN é uma afirmação que se prende ao peito, e onde está inscrita a mensagem que queremos transmitir. Não só por pensar que é importante, mas porque se acredita que é possível passar a outros algo que erguemos como bandeira, ou melhor ainda, como convicção. PIN é também o número que escolhemos porque é nosso, pessoal, único. Vivemos numa era onde o sentimento não tem nome, e o sofrimento não tem rosto. Para nós, cada criança ou família tem um nome, e uma face. PIN é também o alfinete que fixa, e pode ser uma ideia com que um objeto frágil se casa, para revelar a sua importância. Se estamos juntos é porque compreendemos os valores da solidariedade, que também são os da família.” (PIN,2022)
O gelo são os ossos da água. Definição de um jovem com autismo.
“A história do Super – homem está mal contada. Nasceu em Krypton, de pais “Kryptoniticos’. Tanto quanto podemos saber, o seu material genético era bastante diferente do nosso, já que a visão de raio X não faz parte das nossas qualidades habituais. Assim sendo, seria altamente improvável que o bebê, Super-homem se portasse no infantário como um dos nossos filhos.
Duvidamos de que a sua percepção dos sentimentos, ações e estados de alma dos companheiros de sala fosse intuitiva, que procurasse a chucha com a mesma avidez, ou se agarrasse às saias da educadora em pranto, porque outro menino lhe tirara o boneco. Provavelmente, ficaria sossegado no seu canto, meio perplexo com a agitação que o rodeava, sentindo-se seguro apenas quando o deixavam em paz. A capacidade de audição superapurada devia leva-lo à loucura com a profusão de sons estridentes.
Quando fosse mais crescido, seria natural que, no recreio, se interrogasse quanto à natureza das pedras, plantas e outras formas de vida terrena, em vez de brincar às escondidas (visão de raios X, recordam-se) ou jogar futebol. Em adolescente, o Super -Homem sentir-se-ia perdido, tentando compreender os milhares de sinais subtis, verbais e não verbais, que os jovens trocam quando comunicam entre si. A nossa face reproduz mais de uma centena de sentimentos diferentes através de um sorriso. Que mundo confuso!
Se o Super-Homem pretendesse fazer parte de um grupo, teria de imitar as ações das outras crianças o melhor que podia, mas duvidamos de que se tornasse muito popular, (a não ser que utilizasse os superpoderes para retirar vantagens no futebol). O Super-Homem, chegou de outro planeta: o Super-Homem tem uma perturbação do espectro do autismo, que é o que acontece quando uma pessoa nasce sem os instrumentos necessários para poder interagir com todas as subtilezas e matizes que a comunicação humana implica, nas variações do tom de voz, da expressão facial e da postura, já que, quando comunicamos, todo o corpo fala.
Todos os dias se sentiria numa espécie de curso de língua estrangeira onde, com esforço, procuraria compreender as intenções de alguém, quando essa pessoa altera a voz, ou acrescenta ironia à expressão. Até mesmo o valor do silencio teria de ser decifrado. O entendimento que o Super-Homem faria das expressões idiomáticas, provérbios e metáforas seria literal, ficando perplexo perante o sarcasmo ou jogos de palavras: o que quereria dizer o professor quando lhe pediu para “puxar” pela cabeça? Mesmo quando um dos pais é humano e o outro de um planeta diferente, tem-se dificuldade em compreender os terrestres, como acontecia a Mr. Spock, da antiga série televisiva O caminho das Estrelas.
O problema, contudo, não se resumiria à interpretação do que os outros querem transmitir (ou esconder), mas também à informação que o Super-Homem desejaria passar. Clark Kent, o Super-Homem disfarçado de humano, era completamente desprovido de charme e o seu sucesso entre os colegas de trabalho, reduzido. O Super-Homem, é um super-herói sem sex-appeal. Por que?
Porque a sedução se faz através da comunicação que vai ao encontro da sensibilidade do outro. Para isso, é necessário não só compreender os sinais subtis que nos são transmitidos, mas também responder com igual delicadeza, fornecendo pistas não verbais quanto as intenções apenas, sugeridas, e tão mais claramente expressas quanto, no pas-de-deux da comunicação, se percebe que ambos os parceiros estão em sintonia, ou seja, desejam o mesmo. O Super-Homem é incapaz de emprestar emoção ao seu discurso, como alguém que a conversar parece debitar e-mails.
Quando pretendemos comunicar, em geral, usamos palavras, mas o significado muda, e pode até representar o seu contrário, quando dizemos, com ironia: “Bonito serviço!” E há ainda a comunicação não verbal, quando os olhos substituem os ouvidos e a boca. Claro que os nossos olhos falam, e também compreendem o que o outro par de olhos quer expressar, e até pretende esconder. Observe-se a interação de uma mãe com seu bebé, ou de dois amantes que se olham (o que é mesmo), e perceberão de imediato o que pretendemos dizer. “O que pretendemos dizer”... Esta frase revela que a linguagem não verbal, tal como a verbal requer descodificação, e uma resposta também não verbal adequada. O Super-homem teria dificuldades em ambas.” (texto retirado na íntegra do Português de Portugal)
Interessante, e muito perspicaz essa história. Indico a leitura completa do livro: Nuno Lobo Antunes e equipa Técnica do PIN – SENTIDOS, (2021)
Conheçam um pouco mais sobre o Dr. Nuno Lobo Antunes, e seu trabalho no PIN:
Referências Bibliográficas:
PROGRESSO INFANTIL-PIN. Missão e Objectivos. Disponível em: https://pin.com.pt/missao-e-objectivos/ Acesso: 03 de jul.2022
ANTUNES, Nuno Lobo e equipe técnica PIN. Sentidos. Ed. Lua de Papel, 2021, Córdova.
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