Academia Médica
Academia Médica
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
loading
VOLTAR

Segurança Alimentar no livro "Memórias de Adriano"

Segurança Alimentar no livro "Memórias de Adriano"
Raquel Rangel Cesario
nov. 21 - 8 min de leitura
030

Revirando o baú do Finder eu encontrei um texto que escrevi há 10 anos, sobre elementos de segurança alimentar e nutricional (SAN) no livro "Memórias de Adriano". De lá pra cá, a situação da SAN mudou radicalmente no Brasil, desatualizando o texto. Mas em breve a fome  voltará a ser pauta de políticas públicas no Brasil e, por isso, eu achei conveniente retirar o texto do baú e compartilhá-lo.

A seguir, o texto de 2012:

Segurança Alimentar e Nutricional: garantia de condições de acesso aos alimentos básicos, seguros e de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais (BRASIL, 2011). 

Dia 16 de outubro passado comemorou-se o Dia Mundial da Alimentação e 67 anos de criação da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), sediada em Roma.

De Roma vem também a estória que utilizarei para abordar o tema Segurança Alimentar e Nutricional. Utilizando-me de um bom “naco” de licença poética, tomarei emprestado trechos da fala do Imperador romano Adriano, em carta ao seu filho Marco, tal qual retratado por Marguerite Yourcenar em sua obra fictícia “Memórias de Adriano” (1951):

"Uma operação que tem lugar duas ou três vezes ao dia, e cuja finalidade é alimentar a vida, merece certamente todas as nossas atenções. Comer um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido como nós pela terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em coragem. Ah! Por que o meu espírito, nos seus melhores momentos, não possui senão uma pequena parte dos poderes assimiladores do meu corpo?"

No trecho acima, em que fala das refeições, Adriano chama a atenção para a importância da alimentação para a vida humana. Fala magicamente sobre o sentido biológico da Nutrição.

"Foi em Roma, durante os longos banquetes oficiais, que me aconteceu meditar nas origens relativamente recentes do nosso luxo e naquela raça de agricultores parcimoniosos e de soldados frugais, acostumados a nutrir-se de alho e cevada, subitamente deslumbrados pela conquista, devorando as iguarias complicadas da cozinha asiática com a rusticidade de camponeses esfomeados. Nossos romanos empanturram-se agora de aves delicadas, afogam-se em molhos e envenenam-se com especiarias. Um gastrônomo, um discípulo de Aspácio, orgulha-se da sucessão dos serviços, da série de pratos doces ou picantes, leves ou pesados que compõem a magnífica sequencia dos seus banquetes. Seria mais desejável que cada iguaria fosse servida separadamente, assimilada em jejum, sabiamente degustada por um apreciador de papilas intactas.[...]"

Aqui, o Imperador critica os modismos e excessos da alimentação em voga na Roma de então, e mais abaixo vangloria seus vizinhos gregos, capazes de se alimentar dos alimentos básicos que podiam produzir:

"A Grécia era bastante superior nesse sentido: seu vinho resinoso, seu pão salpicado de gergelim, seus peixes assados na grelha, à beira-mar, escurecidos aqui e ali pelo fogo e temperados de quando em quando pelo estalido de um grão de areia, satisfaziam simplesmente o apetite sem cercar de excessivas complicações a mais pura das nossas alegrias". 

Na sequência, o sábio Imperador dá uma deixa para discutirmos o aspecto da segurança microbiológica dos alimentos. Desde seu tempo, século I d.C., havia a noção da necessidade de higiene na preparação dos alimentos, embora ela nem sempre fosse encontrada em todos os lugares. Como hoje! Para se alcançar segurança alimentar e nutricional, é necessário que os alimentos sejam em quantidade suficiente para nutrir, e com uma qualidade que não cause doenças a quem o consome.

"Saboreei numa sórdida espelunca de Egina ou de Falera alimentos tão frescos, que se conservavam divinamente puros a despeito dos dedos imundos do moço da taverna".

Quanto à qualidade, e ao acesso a alimentos adquiridos e/ou produzidos localmente, ele diz ainda:

"A carne cozida nas noites das caçadas possuía uma espécie de qualidade sacramental que nos levava muito longe, quase além das origens selvagens das raças. O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de Samos degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e, por vezes, demasiado forte para um cérebro humano. Não reencontro essa sensação no mesmo estado de pureza nos vinhos numerados das adegas de Roma".

E ele não se esquece da água, alimento rico e sem o qual nenhum ser humano sobrevive, que deve ser fornecida a todas as pessoas de forma constante, em quantidade suficiente e qualidade inquestionável.

"Mais primitivamente ainda, a água bebida na concha da mão ou na própria fonte faz correr em nós o sal mais secreto da terra e toda a chuva do céu. A própria água é uma delícia da qual o doente que sou agora não deve usar senão com parcimônia. Não importa, mesmo na agonia e ainda que de mistura com o amargor das últimas poções, tentarei sentir sua fresca insipidez nos meus lábios".

Finalmente, ao falar nos religiosos e/ou filósofos que tinham alimentação vegetariana, ele aborda os perigos de uma alimentação que não supra as necessidades especiais, mesmo quando a abstinência era voluntária, como nos casos que ele cita. Nos dias atuais, a SAN preocupa-se especialmente com a abstinência involuntária:

"Experimentei rapidamente a abstinência das carnes nas escolas de filosofia, onde convém provar de uma vez por todas cada método de conduta. [...]. Os escrúpulos religiosos dos gimnossofistas e sua repugnância às carnes sangrentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse a mim mesmo em que o sofrimento da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam. E refletia se nosso horror ante os animais assassinados não estaria condicionado ao fato de nossa sensibilidade pertencer ao mesmo reino. Mas em certos momentos da vida, nos períodos de jejum ritual, por exemplo, [...] conheci as vantagens espirituais e também os perigos das diferentes formas de abstinência e até da inanição voluntária. Falo desses estados próximos da vertigem em que o corpo, em parte alijado do seu peso, penetra num mundo para o qual não foi feito e que prefigura a fria leveza da morte". 

Ao falar da alimentação, Adriano baseia-se na sua experiência pessoal e sabedoria, mas não nos brinda com explicações, provavelmente um tanto enfadonhas para ele, sobre as políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional do povo do seu vasto império romano.

Vinte séculos mais tarde, no vasto território brasileiro, questões de segurança alimentar e nutricional viraram políticas públicas multissetoriais, com programas que vão desde o fomento à produção agrícola até estratégias de educação nutricional para o consumo, passando por iniciativas de fomento à comercialização local, a melhoria do acesso à renda, estratégias de acesso a alimentos seguros, entre outros, colocando o país entre os países que melhor combatem a fome no mundo. 

Referências bibliográficas:

Yourcenar, Margherite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Record, 1974.

Sites consultados à época: www.fomezero.com.br; www.saude.gov.br/pnam; www.mds.gov.br

Conclusão:

Estamos em 2022. 77 anos de criação da FAO, 20 anos de idealização do Programa Fome Zero, que veio a ser implementado no ano seguinte. Temos fome outra vez. Mais que nunca, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, arte, educação e empatia.

Leia também:

Benefícios da alimentação com restrição de tempo aliada a exercício de alta intensidade no controle glicêmico a longo prazo

Dieta de estilo mediterrâneo pode reduzir o risco de pré-eclâmpsia em pelo menos 20%

O que fazer e o que não fazer na consulta com um paciente vegetariano

Alimentos ultraprocessados aumentam em 45% o risco de obesidade em adolescentes



Denunciar publicação
    030

    Indicados para você