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A Medicina e a Doença

A Medicina e a Doença
Marcela da Silveira Rocha
set. 8 - 6 min de leitura
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Aos 4 fiquei diabética. Minha mãe – psicóloga – passou a ler tudo o que havia na literatura. Sacam aquele filme"O Óleo de Lorenzo"? Minha mãe fez a mesma coisa com o Diabetes tipo I . Pela casa, DEZENAS de gráficos com os picos das insulinas. "Foram as células beta!", dizia ela.

Mamãe – boa em matemática – sabia as horas que provavelmente eu teria hipoglicemia. Passei a infância com o diabetes na ALMA. Algo meio matemático, simbiótico.... Era uma doença de números, unidades, gráficos... Livros, dezenas deles pela casa... Minha mãe me amava a ponto de desenvolver uma anorexia alimentar. Tinha um extremo medo de me perder.

Com o tempo, em torno dos 10 anos, pedi para assumir o controle da doença. E isso foi muito bem até a adolescência (Ô fase! rs) Foi aí que tudo ficou bagunçado. Virei uma rebelde sem causa, até hoje.

Dizem que diabéticos têm um determinado tipo de personalidade. Temos, sim! Todos com doenças crônicas têm. Dependência do outro, medo da morte. Não há como negar. A gente se confunde com a doença. Seremos sempre "diferentes".

O nome CÉLULA (BETA) me acompanha desde a minha alfabetização. Não é de se estranhar que só consegui me sentir feliz na Medicina! E, por causa do Diabetes, posso dizer que eu já vivenciei um pouco de tudo (rs). Já fui internada com bacteremia, já tive pneumonia hospitalar. Ixe! Já tomei também um pouco de todos os fármacos. De fato, na Medicina eu tenho aquela sensação de "eu sei o que você está passando, porque já passei por isso" quando vejo um doente.

Será que eu seria outra pessoa se não fosse Diabética? Gosto de onde estou, apesar de Medicina ser uma faculdade pesada. A Medicina está me ensinando algo que é tão difícil para quem tem doença crônica: CRESCER. Ela está me tornado adulta. E isso dói!

 


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José* entrou no consultório e ao ver três estudantes de branco congelou no colo da mãe. Tinha um ano e nove meses na época.

Como quem não quer nada, peguei Benjamim (o boneco que carrego para que as crianças possam reproduzir nele os exames e procedimentos que serão feitos com elas no momento do atendimento) e o coloquei em cima da maca, sentado e olhando para o pequeno. José não percebeu pois brincava com um carimbo e uma folha que uma das minhas companheiras do estágio prático ofereceram. Até que seu olhar cruzou com o de Benjamim.

-Olha o nenê!

Ao ouvir sua frase o chamei para conhecer o boneco.

Ele desceu do colo da mãe, veio até a maca, o peguei no colo, ele pegou Benjamim e ameaçou chorar. Coloquei-o no chão e falei para ele mostrar para a mãe o nenê. Ele foi. Esperei alguns minutos para voltar a me aproximar.

Aos poucos e com calma fui chegando perto do pequeno. Abaixei-me para ficar a sua altura e ofereci o estetoscópio de brinquedo para ele auscultar o coração de Benjamim. Ele não gostou muito (não dá pra agradar em tudo), mas amou a injeção que o boneco precisava receber. Ele ainda se mostrava resistente à tentativa de auscultarmos seu coração. Dei a ele um palito colorido, o qual foi mastigado e besuntado de baba até o fim da consulta.

Aos poucos o exame físico foi sendo realizado. Com ele em pé, ora com o boneco na mão, ora com a injeção de brinquedo na mão. Sozinho subiu na balança. Chorou apenas quando fomos medir sua estatura e examinar seus ouvidos.

De volta ao chão ele brincava cada hora com uma coisa (sem desgrudar do palito que mastigava com gosto). Ele sentava na balança e levantava. E a cada momento falava para mim:

-Senta, tio. Levanta, tio.

Sim, eu sentava e levantava.

Sozinho, ele esticou a mão até meu bolso, pegou a caneta amarela que nele estava, e disse:

-Amarelo.

Segundo a mãe foi a primeira vez que ele falou o nome da cor.

Para concluir seu exame físico, mostrei um vídeo do Baby Shark (ele estava com uma bermuda estampada com o desenho). Cantei a música e ele imitava com as mãos a boca do tubarão. Depois dançou a música do pintinho amarelinho. E enquanto a mãe recebia as orientações finais de minha outra companheira de estágio prático, meu pequeno paciente gargalhava quando eu falava “que chulé!” (sim, ele tirou os dois tênis e me dava para cheirar ao mesmo tempo que gargalhava enquanto eu pegava os sapatos).

E, qual não foi a surpresa, quando ao ouvir que iria embora ele sentou novamente na balança e disse que não queria. Meu coração transbordou de alegria. A confiança de José havia sido conquistada.

Pedi a ele que me mostrasse a motinho que havia deixado do lado de fora do consultório. Colocamos os sapatos e ele foi todo risonho me mostrar. Do lado de fora, os pacientes que aguardava na sala de espera olhavam para o pequeno e para mim.

Ajudei-o a entrar na motinho, recebi um abraço, um beijo e um tchau tão eufórico dele que me fez ter a certeza de que eu estava no lugar certo e no momento certo.

Não, o caminho não é nada fácil. Mas esses pequenos momentos fazem valer muito a pena.  E, se por um lado precisamos tocar nossos pacientes, por outro precisamos compreender a importância de estarmos abertos e de permitir que sejamos tocados por eles. É algo único, mágico e que palavras, por melhores que sejam, não conseguem expressar.

 


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