Não é novidade que a Inteligência Artificial (IA) está transformando a maneira como os cuidados de saúde são prestados. Em uma abordagem simplista, a IA consiste no uso de computadores para simular tarefas inteligentes, normalmente realizadas de forma repetitiva por humanos.
Muitos consideram um ciclo de hype para IA e acreditam que nos próximos anos ela se apagará. Bem..., já zombaram do Bill Gates falando sobre o início da internet em uma entrevista em 1995, comparando-a com uma rádio. O mesmo aconteceu com os celulares, carros, relógios inteligentes e a história nos mostra muita coisa diferente.
Atualmente, acontece com a entrada não só da IA, mas também dos gadgets, na saúde e acredito que com o tempo, é provável que todas as especialidades médicas sejam influenciadas pela IA, transformadas em diferentes níveis, mas todas atingidas e, ainda, diversas outras criadas.
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Desta vez, trago mais uma perspectiva olhando sobre o copo pela metade sem enxergar o meio vazio ou o meio cheio.
Inteligência Artificial na prática médica: benefícios, receios e desafios
À medida que a IA assume um papel maior na prática clínica, fica claro que são necessários vários níveis de supervisão.
No entanto, mesmo com acompanhamento apropriado, longe de vieses, a importância da revisão clínica e a confiança nessas tecnologias não podem ser exageradas. Este ponto de vista descreve as etapas que podem permitir que os médicos se envolvam e participem de cuidados de saúde que incluam a IA.
Muito têm sido escrito sobre a potencial promessa e perigo da IA: nos cuidados de saúde, na mídia e nas escolas médicas. Tudo isso contribui para o hype, incluindo a previsão de que certas especialidades médicas serão substituídas por máquinas e um desenvolvedor de tecnologia afirmando: “Devemos parar de formar radiologistas”.
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Como todas as novas tecnologias introduzidas na prática médica, o ceticismo sobre a IA é até adequado enquanto se espera evidências claras e rigorosas de sucesso e benefícios consistentes em ambientes clínicos. Porém, ao contrário do que muita gente pensa, a IA não é primeira ferramenta de tecnologia que promete cuidados de saúde mais eficientes e seguros. Os prontuários eletrônicos de saúde, e todos os softwares ligados a esse sistema, surgiram muito antes.
Inclusive, boa parte dos hospitais públicos tem um prontuário eletrônico ou digital. Esses recursos cumprem algumas promessas, como, por exemplo: maior segurança do paciente, particularmente em relação ao uso de medicamentos. Ao mesmo tempo, levantam-se preocupações sobre os efeitos dos prontuários no bem-estar clínico e na satisfação profissional e na relação médico-paciente.
Neste sentido, não há como prever as consequências, já que elas são de natureza multifatorial. Contudo, um tema recorrente sobre as falhas é a falta de consideração cuidadosa sobre o efeito dos prontuários eletrônicos nos usuários finais. Além disso, presumo que a falta de envolvimento precoce dos médicos da linha de frente afeta negativamente a implementação dos prontuários eletrônicos.
O que é preciso para melhorar a implementação da IA na rotina dos profissionais de saúde?
A IA representa a entrada de uma nova era de tecnologia que pode mudar a prática. Gigantes digitais, como Apple, Microsoft, Google e Amazon estão investindo pesado no segmento e uma vez que a IA está modificando o mindset na saúde, é necessário envolver e educar a comunidade sobre ciência de dados e IA e garantir que o desenvolvimento das tecnologias considere a essência da medicina: proporcionar cuidado e bem-estar aos pacientes!
A meu ver, há alguns pontos importantes para fazer isso. São eles:
1.Investimento na capacitação dos profissionais de saúde sobre IA
É importante ensinar os profissionais de saúde sobre habilidades, recursos e suporte necessários para usar tecnologias baseadas em IA. Isso é essencial para que os recursos de IA sejam implantados com sucesso nos cuidados de saúde.
Para fazer isso, os médicos precisam ter uma compreensão realista dos possíveis usos e limitações dos aplicativos médicos de IA. Afinal, negligenciar esse fato traz o risco de cinismo clínico e resultados abaixo do ideal do paciente.
2. Participação de órgãos públicos na implementação da IA
Diferente da implementação do prontuário eletrônico, baseada em incentivos, é mais provável que a aplicação da IA seja regida por considerações tradicionais de retorno sobre o investimento.
É imprescindível que os órgãos federais exerçam um papel sobre as questões regulatórias, responsabilidade legal e preconceitos sociais. Ainda, dadas as implicações potenciais de longo alcance e o potencial de danos em larga escala causados por algoritmos de IA, são necessárias diretrizes, políticas e leis nos níveis internacional, federal e estadual.
Apesar das evidências (relativamente fracas) que apoiam o uso de IA em ambientes de saúde de prática clínica de rotina, os modelos de IA continuam sendo comercializados e implementados.
3. Desenvolvimento de tecnologias de IA com um padrão rigoroso de qualidade
Diversos modelos preditores de sepse estão sendo implementados pelo mundo, com resultados diferentes. A maioria apresenta um desempenho significativamente pior na identificação correta de pacientes com sepse precoce e na melhoria dos resultados em um ambiente clínico em comparação com a performance observada durante o desenvolvimento do modelo.
No Brasil, um modelo de destaque é o robô Laura, que vem apresentando resultados interessantes. Infelizmente, o padrão não se aplica ao mercado.
Neste cenário, fica o questionamento: se existem modelos em prática que erram em uma proporção maior que o padrão-ouro, de quem é a culpa? Do desenvolvedor? Do estatístico que não filtrou ou banco de dados na criação do que é normal? Do dono da empresa? Do investidor? Regulamentações são necessárias antes que desastres clínicos aconteçam.
Por isso, um padrão rigoroso de relatórios e revisão de produtos de IA é essencial, bem como um processo de aprovação federal robusto, como o usado para produtos farmacêuticos. Um pouco mais além, não só na implementação mas também em avaliações contínuas de sua aplicabilidade e precisão.
Diretrizes de relatórios padronizados, confiáveis e baseados em evidências para ensaios clínicos de IA e estudos relevantes usados para avaliar a utilidade das tecnologias de IA precisam ser desenvolvidos.
4. Consideração dos impactos IA na prática médica (e na aceitação dos médicos)
Na ausência doa padrões de relatório, a confiança do clínico e o uso apropriado de tecnologias baseadas em IA serão prejudicados.
Os médicos da linha de frente devem se sentir à vontade para avaliar a literatura médica relacionada à IA na prática clínica.
Uma analogia é o movimento da medicina baseada em evidências (MBE), que criou guias de usuários que equipam os médicos com as habilidades para ler e aplicar adequadamente a pesquisa ao atendimento ao paciente.
À medida que a sofisticação dos médicos na avaliação da literatura de IA cresce, é provável que haja um aumento concomitante no rigor e transparência dos relatórios de ensaios de IA. O desenvolvimento e a promoção de guias de usuário apropriados ajudarão a apoiar essa transformação.
Mais ou menos na época em que o MBE estava sendo lançado, um movimento paralelo começou a promover a tomada de decisão compartilhada entre pacientes e médicos.
À medida que as previsões e algoritmos baseados em IA continuam a informar decisões médicas, pacientes e médicos devem repensar a tomada de decisão compartilhada, pois as decisões podem agora envolver um novo membro da equipe — um algoritmo derivado de IA.
Em última análise, os médicos terão grande parte da responsabilidade de intermediar com sucesso o relacionamento triádico entre os pacientes, o computador e eles mesmos. Mais uma competência a ser treinada.
Os médicos precisarão explicar o papel que a IA tem em seu raciocínio e recomendações. Com o tempo, essa relação provavelmente mudará, com a possibilidade de algumas decisões serem tomadas diretamente pelos pacientes e familiares com base nas recomendações da IA, ignorando o clínico.
5. Reconhecimento dos desafios e obstáculos para implementação da IA na medicina e na ciência
Metodologias errôneas ou excessivamente complexas, falta de explicação, um desenho de estudo tendencioso ou seleção de coorte podem levar à não reprodutibilidade dos resultados e isso gera obstáculos e desconfiança em qualquer descoberta de pesquisa de IA.
Os cientistas de IA e os médicos precisam criar uma plataforma comum de entendimento para criar uma metodologia robusta e validada e produzir resultados significativos.
A comunicação entre os membros da equipe multidisciplinar e a colaboração sustentável são a chave para o sucesso nos mundos virtual e não virtual.
Essa colaboração fará a diferença entre os resultados de pesquisas que levarão a melhores resultados para os pacientes e aqueles que nunca serão implementados na prática.
Cada aventura de IA pode levar a uma descoberta maravilhosa, e os dados brutos não podem prejudicar fisicamente um ser humano. No entanto, quando a ciência mal interpretada e analisada é aplicada, pode ser enganosa a ponto de ser destrutiva. Portanto, a pesquisa de IA na medicina deve ser examinada rigorosamente porque o público espera margens de erro próximas de zero (ou melhor, o zero).
A IA logo se tornará onipresente nos cuidados de saúde, mas ainda acredito que a necessidade do fator humano na saúde impedirá a singularidade na saúde, ponto no tempo em que os robôs ultrapassam a capacidade humana, pelo menos nos próximos 500 anos.
Com base nas lições aprendidas à medida que as estratégias de implementação continuam a ser elaboradas, será essencial considerar o papel principal dos médicos como usuários finais de algoritmos, processos e preditores de risco desenvolvidos por IA.
Mãos à obra
Por fim, acredito ser imperativo que os médicos tenham o conhecimento e as habilidades (soft e hard skills) para avaliar e determinar a aplicação apropriada dos resultados da IA, seja para sua própria prática clínica ou pacientes.
Com isso, em vez de serem substituídas pela IA, as novas tecnologias criarão novos papéis e responsabilidades para os médicos. A abertura, a transparência e a vontade de aprender e comunicar de forma eficaz uns com os outros certamente levarão a novas descobertas que beneficiarão os pacientes.
Mãos à obra!
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