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Gabinete de Curiosidades Médicas: Cortem-lhe a cabeça! Parte II ― Duas receitas de matar

Gabinete de Curiosidades Médicas: Cortem-lhe a cabeça! Parte II ―  Duas receitas de matar
Jocê Rodrigues
nov. 12 - 8 min de leitura
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Bem-vindos à série "Gabinete de Curiosidades Médicas"! Aqui você vai encontrar fatos curiosos, sombrios ou interessantes sobre a história da medicina e das artes. Prepare-se para um encontro inesperado com médicos, escultores, pintores, filósofos que se unem para contar um pouco das inusitadas intersecções, costuras e remendos entre ciência, medicina e literatura no Século XIX.

Na coluna passada contei um pouco da história de Joseph Guillotin, da sua defesa por uma execução limpa, indolor e igualitária entre os condenados à morte e do uso da guilhotina para essa finalidade.

No entanto, para além de todas as questões que envolviam esse curioso e icônico maquinário mortal criado por um cirurgião (que não era Guillotin), era ainda mais curioso notar o que acontecia logo após as execuções públicas em tempos anteriores aos da Revolução Francesa. 

Luto, lamentos e chororó? Talvez um pouco. Mas o que mais ocorria mesmo era euforia, na maioria das vezes, era êxtase e canibalismo. Sim, canibalismo. Não como um festival em que as pessoas se refestelam com a carne uma das outras, mas algo um pouco mais sutil. 

Durante um período da longa caminhada da história humana (dessa vez na Inglaterra da Renascença) a maioria da população estava realmente interessada em assistir execuções públicas. Estes eventos eram quase como um show no palco principal do Rock in Rio: cheio de gente se acotovelando para pegar um bom lugar nas primeiras fileiras. Acham que eu peguei pesado na comparação? Então, vejamos. 

Nessas ocasiões tinha de tudo um pouco. Bebida, malabaristas, gritaria, confusão, desmaios, euforia. Enfim, tudo o que hoje se pode encontrar em um desses grandes festivais de música com bandas de nomes impronunciáveis e que arrebatam multidões. E não era apenas a curiosidade mórbida e o gosto por espetáculos violentos que levavam essas pessoas para as praças públicas. O interesse era também, acreditem, medicinal. 

Alguns tratamentos recomendados para a epilepsia na época, por exemplo, incluíam a ingestão de sangue fresco. Não tem sangue fresco dando sopa no momento? Não tinha problema. Sangue em pó ou destilado também obtinham os resultados esperados - pelo menos era o que os médicos diziam.

Por conta da crença no poder medicinal de certas partes e fluidos do corpo humano, após a decapitação dos acusados, com o sangue viscoso ainda jorrando com toda pressão das artérias recém-cortadas, era comum que pessoas adoentadas tentassem chegar o mais perto possível do cadáver para conseguirem beber o sangue ainda fresco. Algumas delas chegavam a levar taças para coletar o líquido quente, no intuito de levar para casa e oferecer ao necessitado. 

Rostos contorcidos e ensanguentados; roupas manchadas; línguas que tomava de assalto o assoalho ao pé do carrasco, bebendo direto do pescoço que minutos antes ainda era enfeitado por uma cabeça… Um cenário não muito bonito, mas que poderia agradar aos fãs das séries sanguinolentas que fazem a cabeça (desculpem o trocadilho) dos espectadores de hoje.

Tudo bem. Eu sei que eu disse ali em cima que esse comportamento era mais sutil do que um banquete canibal, com partes humanas sendo devoradas em volta de uma fogueira. Mas, reparando melhor, talvez não seja tão sutil assim.

O sangue, com toda a sua função medicinal, era usado também como ingrediente em receitas. Em um trecho do livro “Il Sugo Della Vita”, o historiador e antropólogo italiano Piero Camporesi fala sobre um certo frade franciscano do século XVII que, de tão animado com os supostos benefícios do rubro líquido da vida, até criou sua própria receita de marmelada de sangue, que tenho o prazer de reproduzir aqui para vocês: 

“Coloque-o (o sangue) sobre uma tábua plana e lisa de madeira macia e corte-o em tiras finas, permitindo que a parte aquosa escorra. Quando não pingar mais, coloque-o no fogão e mexa com uma faca até formar uma massa. . . Quando estiver absolutamente seco, coloque-o imediatamente em um pilão de bronze bem quente e amasse, forçando-o depois a passar por uma peneira da mais fina seda. Quando tudo tiver sido peneirado, sele-o em uma jarra de vidro. Renove-o na primavera de cada ano.”

Nham nham! Uma receita que tinha tudo para bombar nas fotos das redes sociais, caso elas já tivessem sido inventadas no século XVII. 

Outra receita feita à base de sangue vem diretamente do século XV, sugerida dessa vez por ninguém menos que Marsilio Ficino. Ele acreditava que o sangue de alguém jovem poderia restaurar as forças dos mais velhos e recomendava que ele fosse tomado fresco, diretamente de uma pequena incisão feita no braço esquerdo. Assim, com a boca direto na ferida mesmo, como uma sanguessuga. 

Para aqueles que acham essa coisa de beber sangue diretamente do braço de outra pessoa um tanto quanto repugnante, Ficino tinha a solução. Era só cozinhar o sangue misturado com açúcar ou destilá-lo numa mistura de água quente com açúcar e pronto. Bem melhor, não?

Agora, pense comigo: se o sangue de uma pessoa comum era capaz de trazer enormes benefícios à saúde, imagine se esse sangue viesse da realeza! Nessa época, a crença comum era de que os reis eram legítimos representantes de Deus na Terra. Portanto, eram seres divinos, separados do resto humanidade pela pureza e divindade do seu sangue. Então, quando era anunciada a execução de um nobre, o povo ia à loucura e tratavam logo de preparar os seus enfermos, taças e cumbucas.

Quando o rei Carlos I foi executado na Inglaterra, em 1649, foi como se o Iron Maiden (ou Anitta, para quem preferir) tivesse subido ao palco. A multidão foi à loucura. Todos queriam uma gota do seu sangue real para curar suas enfermidades. Foi um alvoroço só. Tanto que, ao notar a aflição e o interesse dos presentes por uma gota do suco real que jorrava aos borbotões, o carrasco do pobre Carlos viu ali uma grande oportunidade de negócio e vendeu alguns chumaços de cabelo com coágulos de sangue do rei decapitado. 

Mas nem só de sangue vive o homem. Por isso, voltemos ao tema da coluna de hoje: cabeças.

Os crânios decapitados também tinham um papel importante para a medicina popular. Era um item que não podia faltar no estoque de todo boticário de respeito. Este ingrediente era ainda mais valorizado se tivesse pertencido a um homem que sofreu uma morte violenta. Dos crânios eram feitos pós, misturas e destilados que eram então receitados aos pacientes com a promessa de solucionar qualquer problema de saúde. Além disso, o musgo que crescia em volta de um crânio também era considerado uma potente iguaria medicinal e, diz-se, poderia curar desde a fadiga até a peste. 

Para quem acredita que essas bizarras misturas e receitas ficaram enterradas nos idos anos de 1600, é melhor pensar de novo. De acordo com Richard Sugg, autor do livro “Mummies, Cannibals and Vampires: the history of corpse medicine from Renaissance to the Victorians”, essas práticas foram se transformando e passadas adiante na Inglaterra até meados de 1890, quando o musgo das caveiras ainda era usado para tratar dores de cabeça. Irônico, eu sei.

Por isso, da próxima vez que você reclamar do gosto ruim de um remédio, lembre-se que poderia ser bem pior. Lembre-se que, por sorte, você vive no século XXI e não vai precisar comer farinha de crânio com sangue de condenado executado, duas vezes por semana, em jejum, no café da manhã.

Por hoje é só. E, depois de tanto escrever, bateu até uma fome.

Vai uma marmelada aí???

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